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Comédia. A fronteira final (parte 3)
Por Ruy Jobim Neto
09/12/2005

Com essa divertida (e não menos brasileira) tira do Benett nós começamos a terceira parte de nossas discussões a respeito da construção do humor e, portanto, da comédia em tiras cômicas. Aliás, esta é uma tira com a estrutura A - A - B, onde A é um tema que sofre uma "repetição" (poderíamos dizer assim, mas é mais complexo que isso) e B é o desfecho, com a punch line desfazendo completamente todo o raciocínio de A. Depois da leitura de qualquer tira, tecendo esta análise, parece que tudo o mais perde toda a graça, mas se trata exatamente da desmontagem do que o cartunista nos deu.
 
Na realidade, aqui A não é uma repetição de A. Mais justo seria dizer uma corroboração, um crescendo, em linguagem de música. Temos, portanto, uma típica tira de três quadros. Em Garfield, de Jim Davis, por sua vez, na mesma montagem de três quadros (praticamente a única recorrente nesta famosa tira, com raríssimas exceções), temos variações sobre a mesma estrutura. Ora encontramos a sucessão A - B - C, onde C é o quadro com a punch line (em Garfield, é a estrutura mais fácil de encontrar), mas também se seguem estruturas como a da tira acima, do Benett, em A - A - B.
 
Qual é a mais difícil de escrever? A mais fácil? É interessante que esta discussão fique a cargo de cada autor, mas temos, dentro desta "pauta" (novamente um termo musical) composições com tempos diferentes, momentos diferentes. Não só fica complicado tentar responder a ambas as perguntas (não faria o menor sentido) como cada autor encontrará o seu filão, onde melhor possa adequar seu humor.
 
Em muitos materiais de tiras cômicas, por sua vez, como os de Rog Bollen para Os Bichos, também temos a estrutura A - B, em dois quadrinhos, onde B fecha a tira com o punch line. E assim por diante. Fernando Gonsales, em seu Níquel Náusea, aplica muito bem esta estrutura, e seu humor corrosivo se presta a uma demolição sem meios termos, às vezes sem a necessidade de um terceiro quadro entre A e B.
 
O trio de autores americanos Don Wilder - Bill Rechin - Johnny Hart, parceiros de brainstorming, em suas tiras B.C., Crock e O Mago de Id - todos com tradução de Sonia Bibe Luyten para o Jornal da Tarde, nas décadas de 1960 e 1970 - trafega com enorme facilidade por estruturas de dois, três e mesmo quatro quadrinhos. Uma tira de quatro quadrinhos lembra sempre, em sua execução e mesmo na leitura, uma música com compasso quartenário.
 
O caso de Calvin & Hobbes (Calvin & Haroldo, de Bill Watterson) e mesmo o de Mafalda (Quino) em que até seis quadros por tira podem ser encontrados, a colisão da informação cômica, a maneira pela qual esta vai se processando, vai sendo despejada pelo cartunista, detona finalmente numa virada, tendo no último quadro com punch line o desfecho cômico. Em Henry (Pinduca), de Carl Anderson - utilizado largamente por Cagnin em Os Quadrinhos - até mesmo o complicado humor pantomímico gerado em quatro quadrinhos (na maioria das vezes) tem um tipo de punch line visual, em geral, um comentário do protagonista, sob a forma de suspiro, sinais de braveza ou outra atitude.
 
Nesta etapa do artigo, trataremos de outra característica da escrita de comédia, a identificação, a repetição. Quando nós reconhecemos uma verdade cômica, nossa tendência é o riso, e é tão óbvio que pensamos: "Sim, esta é a maneira que realmente se dá, como acontece". O humor baseado na identificação tende a ser o mais repetido (ou repetível). Pode ser engraçado de tempos em tempos. É o caso de Garfield com a segunda-feira ou os bordões humorísticos de TV.
 
Freqüentemente neste tipo de humor, o elemento surpresa enfatiza a experiência da identificação com aquilo que nos é cômico, de forma que algum humor (devido a essa identificação) atinge o seu ponto máximo na primeira vez que o encontramos. (Curiosidade: a tira Crock, de Parker & Wilder, tem Eu Odeio Segundas-Feiras! como título de um pocket book, exatamente o do segundo volume lançado em território americano, pela Coronet Books).
 
Nelson Rodrigues costumava dizer que uma boa piada tem três vidas. Na quarta vez em que ela mesma é apresentada (portanto, reapresentada), perde o efeito. Então por que o ódio à segunda-feira de Garfield funciona tão bem? Simplesmente porque os roteiristas de Jim Davis, na Paws, quando não ele próprio, tomam o cuidado de esparramar ao longo de um ano inteiro certa quantidade de tiras abordando o tema. Quando se torna recorrente, mais uma vez rimos dessa característica do felino (ao mesmo tempo em que rimos de outros de seus deliciosos defeitos, como a preguiça, a maldade, a gula, etc.). A tira de Davis é a maior prova viva da repetição, do bordão usado em tiras ("Odeio segundas-feiras!") enquanto outras tiras (como Níquel Náusea) primam pela diversidade de temas, pela não-repetição.
 
Mas até mesmo quando o elemento de surpresa é perdido, ele continua, portanto, como nos exemplos acima, delicioso. E num ponto importante, mas não em menos óbvio nível, se não reconhecemos a verdade do que está acontecendo, a cena da tira que lemos não possui efeito algum sobre a gente. E assim, no próximo texto, trataremos de nova questão, a da superioridade em comédia, sempre procurando aplicar, o máximo que pudermos, às tiras cômicas.

 Do mesmo colunista:
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