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Comédia. A fronteira final (parte 2)
Por Ruy Jobim Neto
02/12/2005

Ao abrirmos a segunda parte de nossas discussões acerca do humor nas tiras cômicas com essa brasileiríssima tira de , de Jean, uma questão retorna: ninguém efetivamente pode explicar porque algumas coisas são engraçadas e outras não. Impossível oferecer respostas definitivas, seria extremamente arriscado e nada gentil, mas nos será útil, ao menos, considerar alguns princípios da teoria cômica e como eles se aplicam a tiras.
 
Segundo Aristóteles em sua magistral obra Ars Poética, "os dórios atribuem a si a invenção (...) da comédia; e os megarenses também se arrogam a invenção da comédia, como fruto de seu regime democrático; e além desses, também os sicilianos se acham inventores da comédia (...). A criação da comédia é também reclamada pelos peloponésios, que invocam os nomes usados para denominá-la com palavras de seu dialeto, para argumentar ser esta a razão por que a comédia é invenção deles".
 
E o autor grego vai ainda mais longe: "A comédia é (...) imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo". E segue: "O ridículo reside num defeito ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento".
 
Comédia aparece, portanto, através de uma entidade ambígua que nós podemos chamar de "espírito cômico". Isso não é metafísico, por favor, mas apenas uma convenção para qualquer coisa que tenha a qualidade de transformar algo em cômico, engraçado. Essa convenção, esse "espírito cômico" incorpora muitas coisas, incluindo duas muito importantes: ponto-de-vista e tom. Retornaremos a elas, mais tarde.
 
A maior parte das teorias sobre a comédia focam em um ou mais elementos da seguinte lista: surpresa, identificação, superioridade, rebelião e agressão e finalmente a brincadeira. Vamos brevemente considerar cada um desses elementos.
 
Surpresa - Este é um componente importante da maioria das piadas. Quantas piadas são engraçadas na segunda vez em que as ouvimos? Provavelmente não iremos rir na segunda vez em que uma piada é ouvida exatamente porque sabemos a punch line, não há surpresa, portanto. Para que não façamos ouvidos moucos, punch line (literalmente = fala de sôco, pancada, força) trata-se literalmente da última frase de toda piada e, conseqüentemente, de toda tira cômica.  
 
Curiosos são, para quebrar esse raciocínio, os casos de desenhos animados de Tom & Jerry (Hanna-Barbera, MGM, década de 1940), The Pink Panther (Friz Freleng, United Artists, década de 1960) e algumas obras-primas detentoras de Oscars como alguns filmes dirigidos por Chuck Jones para a Warner (o genial One Froggy Evening, de 1955, em que um mendigo encontra um sapo que canta e dança, ou os curtas do Road-Runner, o Papa-Léguas). Podemos assistir a muitos desses filmes, saber ou até relembrar algumas das piadas visuais antecipadamente, e ainda assim morremos de rir. Claro que o timing perfeito de muitos desses desenhos e a antecipação causam esses efeitos em nós.
 
Na realidade, o elemento cômico que nos faz retornar à escrita da tira cômica é a possibilidade dramatúrgica do improviso. E não há mais improviso, portanto, a partir do momento em que o artista escreve a sua punch line. Ele finaliza a idéia ali, mas até chegar a ela, algum grau de surpresa é inevitável. Aí reside boa parte do recurso cômico da tira (e da piada em si). Retornando, por brevíssimo momento, ao livro do Prof. Cagnin (Os Quadrinhos), há na tira cômica a apresentação do problema, logo em seguida, há uma antecipação para o que virá, que é a virada.
 
Quando temos a virada, esta se opõe a uma idéia inicial e vem, conseqüentemente, a demolir o que foi construído até aqui. A seguir, o desfecho (desenlace), que leva em si a punch line. O artista deve ter o controle rigoroso do timing do texto para conseguir que esse momento funcione perfeitamente. Portanto, com margem de improviso, nem mesmo isso é lei. Não existe lei em comédia, como pretendia fixar nosso brilhante Aristóteles.
 
Porém, tampouco a surpresa, somente, é suficiente o bastante para criar comédia. Só porque algo é inesperado, não significa necessariamente que seja engraçado. Mesmo a tragédia tem que ser repleta de surpresas, senão se torna entediante (vide as reviravoltas fantásticas que Shakespeare constrói em Hamlet ou Romeu e Julieta). Então se deduz que o elemento surpresa não é decisivo para todo tipo de comédia.
 
Algumas coisas são até mesmo mais engraçadas quando nós sabemos o que está vindo. Daí a lógica dos bordões em personagens cômicos de Chico Anysio ou Jô Soares nos programas de TV. O público sabe que no bordão (uma variação prima, quase irmã do punch line, nesses casos) está a graça da piada ou, em termos mais gerais, a graça do personagem. O mesmo acontece com Garfield, quando ele descobre que o dia aborrecedor não passa de uma segunda-feira, que ele odeia. E nós amamos que Garfield odeie segundas-feiras, por que muitos de nós nos identificamos com isso (mas reconhecimento e identificação é o nosso próximo tópico).

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