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Colin, o Gigante
Por Carlos Patati
16/01/2011

 

É difícil fazer justiça a um gigante da nona arte. Além do mais quando, antes tarde do que nunca, ele afinal vem sendo lembrado, mais por quem não era nascido quando seu trabalho estava nas bancas. Só é de se lamentar que as realidades do mercado do seu tempo tenham-no remunerado tão mal, e que tenha sido tão pouco celebrado quando vivo. Ainda bem que hoje há quem o faça direito, aqui e ali, como foi o caso do Salão Carioca de Humor, canal transversal (uma vez que ele não pretendeu em particular o humor, na sua obra) do reconhecimento de seu trabalho. Isso foi através de mostra muito bem produzida, na sua décima segunda edição, que se preocupou com o tema da brasilidade, por ocasião dos eventos relativos ao descobrimento. Parece que sua hora chegou, na era da imagem precisa, icônica, que vivemos. Não é sem tempo.

Quando vivo, o gigante de quem falo conseguiu promover a qualidade de certos personagens, e realizar muitas HQs de alta qualidade. Mas não era considerado um artista muito comercial, num meio dominado primeiro pelo humorismo e, depois, no “submundo” das HQs mais longas, por certo “realismo” descritivo contra o qual seu estilo expressivo e pessoal sobressaía. E sobressai. Agora tem muito mais admiradores, mas continua ímpar. Está sendo até celebrado! Não, não é sem tempo.

Estou falando de Flavio Barbosa Mavignier Colin, nascido em 20 de junho de 1930 e falecido em 13 de Agosto de 2002.  Foi um dos mais completos e originais quadrinhistas brasileiros. Sem dúvida, é o mestre da HQ brasileira de fôlego, aventura,  liberta do chiste e da piada imediatos. Na qual, ao mesmo tempo, não se trata de descrever detalhes anatômicos, mas de botar os personagens pra se expressar. Esta foi uma vertente que não se concretizou de todo, do ponto de vista do mercado, a exceção dos momentos especiais do terror e do erotismo, dos quais Colin participou com destaque. Mestre do desenho, também era roteirista consumado. Nem por isso, deixou de colaborar com uma legião de roteiristas que atravessa diversas gerações de quadrinhistas brasileiros apaixonados por seu desenho. Colaborou com seus contemporâneos e com muitos dos mais jovens também. É uma vasta lista , que inclui  Hélio do Soveral e Wellington Srbek.  Pôs sua vasta formação a serviço daquilo que vivenciou como entretenimento popular. Os quadrinhos de aventura, em todas as suas variações: os exploradores das terras distantes, os caubóis e naturalmente os quadrinhos de terror!

A primeira característica, sempre muito notada no seu trabalho, é que parece pular da página. Tem volume. Seu movimento conta a história com rara precisão. O leitor não esquece suas massas de preto e de branco. Esse estilo muito pessoal foi uma evolução das forças formadoras de seu gosto pelas HQs. Claro que era leitor de Alex Raymond e Hal Foster, mas o dono do estilo que revelou seminal para Colin foi Milton Caniff. O criador de “Terry e os Piratas” e “Steve Canyon” sabia que estava desenhando principalmente para quem o lia todo dia, em preto e branco, e o traço  tinha que ser expressivo. O desafio era colocar o cotovelo do personagem onde parecia estar, não onde de fato estivesse. Desenvolveu um modo rápido e tenso, cheio de variações de pontos de vista, para contar aventuras eletrizantes, com um realismo crescente ao longo dos anos. Para isso, elaborou um estilo que resistia muito bem às perdas de qualidade da impressão, em época de valores gráficos bem mais pobres.

De modo nenhum Colin foi o único grande desenhista a ser influenciado por essa atitude. Nomes de peso como Hugo Pratt, Alberto Breccia (conhecemos muito pouco, no Brasil, de sua longa trajetória), Alex Toth, Frank Robbins, John Romita pai e muitos outros assim têm dívidas formadoras e confessas com o que se pode chamar o estilo/escola de Caniff.

Embora também tivesse admiração por Chester Gould, como desenhista Flavio Colin  era mais completo que ele, que por outro lado soube tirar muitas soluções criativas de suas limitações, criando a obra clássica e singular: “Dick Tracy”, a principal HQ policial americana, em preto e branco. Mas Gould não era tão versátil quanto Colin, capaz de desenhar com o mesmo desembaraço uma história de época inspirada em Poe, como fez diversas vezes nas revistas de Terror, (desde a editora Outubro, nos anos 1950, até a D´Arte, nos anos 1980) uma guerra de cangaceiros ou a revolução farroupilha. Em vez de detalhar cada músculo como Hogarth, Foster e Raymond, os dois sabiam sugeri-los com o uso de poucos e precisos elementos. Como Caniff, Colin conseguia variar mais as poses dos personagens de “Dick Tracy”, sempre a serviço de contar a história.

Colin entrou no mercado nacional de quadrinhos através da então Rio Gráfica e Editora, hoje editora Globo. Realizou nessa época HQs de personagens americanos cujos direitos a editora detinha. De 1956 a 1959, fez HQs do Águia Negra, do Cavaleiro Negro e de diversos outros, em especial westerns. Era comum que, junto do material estrangeiro, também houvessem versões de desenhistas e argumentistas brasileiros.  Colin entre eles, com muito sucesso, no começo da carreira, desde os vinte e seis anos de idade.

Também, adaptou para as HQs, com sucesso, um popular herói brasileiro do rádio, “O Anjo”. Foi um trabalho conhecido, realizado com acento aventuroso ímpar e inimitável, na editora RGE, que se tornou Globo, mais tarde. Também trabalhou no “Jerônimo, o herói do sertão”, outro personagem vindo do rádio. “O Vigilante Rodoviário”, também no período, saiu pela Continental/Outubro. Procurando a aventura, prosseguiu assim o caminho de um desenhista que mais tarde, falando de seu país, seria publicado em  diversos mercados estrangeiros, como o argentino, o português, o belga, o italiano e o uruguaio. Data desta época inicial sua entrada no então saudável mercado brasileiro de HQs de terror, que na Outubro teve orientação do grande desenhista e editor Jayme Cortez, que depois também foi diretor de arte dos estúdios Maurício de Sousa.  O terror agradava os desenhistas porque demandava soluções elaboradas. Com clima de “crime story”, ou num estilo que hoje seria gótico, ele logo impôs seu talento. Considera-se a HQ “O morro dos enforcados”, também escrita por ele, sua obra prima de então. Outra HQ muito republicada é a magistral adaptação do conto “Berenice”, de Edgar Allan Poe.

Foi nessa época que diversos excelentes desenhistas, pela primeira vez no nosso mercado, praticaram o comercial e criativo susto no leitor. Nomes como o do próprio Jayme Cortez e de Nico Rosso, primeiro; depois Julio Shimamoto, Lyrio AragãoRubens Cordeiro, Eugênio Colonnese, Rodolfo Zalla, Álvaro de Moya e Ignácio Justo, junto com muitos outros, deram tratamento brasileiro aos temas clássicos do terror. Estes tiveram pujante mercado, ainda que não tenham acompanhado a renovação constante nos roteiros, ocorrida nos equivalentes estrangeiros.

O diferencial da arte de Colin era o amor pelo Brasil. Assim, ao longo da carreira, foi um dos desenhistas cuja temática mais procurou a nossa fabulação popular, dos quais  foi um dos praticantes mais criativos. Essa fase culminou na CETPA, Cooperativa Nacionalista de Quadrinhistas Brasileiros do começo dos anos sessenta, no sul do país, por ensejo do governo Brizola. A HQ que criou então foi “Sepé Tiaraju”, a partir de um personagem histórico índio e nacionalista. Mais tarde, com texto de Luiz Rettamozo, foi retomado na revista “Sertão e Pampas”, da Grafipar, excelente editora paranaense de quadrinhos de vários tipos, com predomínio do erótico, nos anos 1970.

Mais ou menos na mesma época dessa experiência “militante” (Quadrinhistas brasileiros querendo trabalho no Brasil, com temas locais também), sob texto do próprio Colin, a versatilidade e a pluralidade de seus interesses floresceu e se impôs. Isso aconteceu  no tempo em que, por muitos anos, manteve seu trabalho mais maduro, em convívio com elementos realistas e caricaturais, tanto no texto como no espetacular tratamento visual. “Vizunga”, uma obra prima da tira diária, foi distribuída pela Maurício de Sousa produções nos anos 1960. Encarou o inglório desafio de realizar um seriado brasileiro, de modo muito original. A série, e o seu personagem principal, contavam histórias de caça e pesca de modo exagerado. Quando mostrava as cenas urbanas em que o dito Vizunga narrava seus “causos”, o tratamento visual era realista. Quando se tratava de mostrar os próprios causos, era caricatural e exuberante. Nos dois casos, de modo muito pessoal e entrelaçado. A tira durou pouco, mas até hoje é referência.

Depois disso, seu versátil estilo se tornou mais ousado, até mesmo carnavalesco, em certos momentos, como por exemplo na saga do Hotel Nicanor, escrita em tremenda veia terrir por Juka Galvão. Esta série saiu primeiro nos gibis de terror da Vecchi, quando era Otacílio Barros o editor. Nas revistas Spektro e a Pesadelo, nos anos setenta, e nos anos oitenta, na Otacomix, em gibi próprio, de curta duração, os monstros canibais do hotel Nicanor puseram as manguinhas de fora algumas vezes.

No quadrinho de terror brasileiro, o mestre já tinha deixado sua marca desde os anos cinqüenta, e ela se aprofundou à medida em que os temas se tornaram mais nacionalistas, na Vecchi, na Grafipar, na D`Arte (das saudosas Calafrio e Mestres do Terror, publicadas nos anos oitenta e noventa, por Rodolfo Zalla) seu traço deu expressão a diversas lendas e personagens brasileiros. Também esteve presente no Lobisomem da editora Bloch, com editoria de Edmundo Rodrigues. Desde então, à falta de gibis com presença de banca sistemática, Colin se dedicou a diversos romances gráficos com texto seu mesmo, como “O Boi das aspas de ouro” (Escala, 1997); de Ataíde Braz, “A Mulher Diaba no rastro de Lampião” (Nova Sampa, 1994); de Tabajara Ruas,“ A Guerra dos Farrapos” (L&PM 1990); de André Diniz, “Fawcett” (Nona Arte, 2000); de Wellington Srbek”, Estórias Gerais” (Prefeitura de BH, 2001). Isto, além de alguns livros de HQs curtas, como o “Mapinguari” e o “Filho do Urso”, ambos da Opera Graphica. Em todos esses trabalhos, e em mais alguns outros que devem ter escapado ao exame, saltava aos olhos sua vontade de mostrar o Brasil aos mais novos, e sua imaginação. Essa riqueza de abordagem se manteve também em trabalhos realizados para o mercado belga, como o “Curupira” e o “Caraíba”, publicados no Brasil pela Pixel, também já no começo do Século XXI.

A riqueza visual do trabalho de Colin transbordou dos quadrinhos primeiro por motivos financeiros, nos anos sessenta, quando  um desenho de storyboard lhe pagava o valor de um mês inteiro de “Vizunga”. E depois também por motivos criativos: Colin fazia talhas em madeira! Carantonhas, figuraças totalmente saídas dos desenhos de suas HQs!! Dá para imaginar que magníficas “action figures” brasucas teria nosso herói criado, fosse nosso ambiente cultural e comercial um pouquinho menos medroso.

Do jeito que as coisas ficaram, podemos, felizes, festejar a trajetória e a herança de um criador inimitável, contudo exemplar, que ao longo de uma vida produziu e comercializou HQs de altíssimo nível no Brasil, sobre o Brasil.

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