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Entrevista: Antônio Luiz Cagnin
Por Marcio Baraldi
03/11/2010

"Angelo Agostini foi o cavaleiro da esperança, que amou extremamente o Brasil!"

Conversar com Antônio Luiz Cagnin, definitivamente, não é um privilégio para qualquer um! Pra mim é realmente uma honra estar com um dos pioneiros no estudo dos Quadrinhos no Brasil, um sujeito com oito décadas de vida e pelo menos seis delas dedicadas ao amor pelas HQs. Travei contato com a obra de Cagnin quando ainda era moleque e literalmente surrupiei um exemplar de seu único livro, "Os Quadrinhos", de uma biblioteca. No ato saquei que era um trabalho pioneiro no Brasil! Anos depois, com as (vira) voltas que a vida dá, cá estou eu conversando com o sujeito sobre este mesmo livro e muitos outros, inclusive sobre a profunda pesquisa que Cagnin vem fazendo sobre o patrono do Quadrinho Nacional, Angelo Agostini, e que resultará no aguardado próximo livro do autor.

Articulado e verborrágico, como convém a um bom geminiano, Cagnin falou bastaaaaaaante nessa entrevista exclusiva. Deu uma geral em sua invejável trajetória, contou das históricas publicações Tico-Tico e Gazetinha, e confirmou todo seu conhecimento, respeito e amor pela obra de Agostini, revelando inclusive curiosidades, como o fato de a primeira HQ Brasileira não ter sido feita por Agostini e sim pelo francês Sisson.

Enfim, se você, como eu, não teve a honra de ser aluno do Mestrão Cagnin lá na USP, aproveite agora esta verdadeira sala de aula virtual que o poderoso professor gentilmente nos proporciona. E o último que chegar é um Diabo Coxo!...

1 - Bom dia, Mestre. Se importa se eu perguntar sua idade?

Estou, como dizem os romanos, “fazendo os 81“, com os 80 já completos e passados. Fui batizado com o nome de Antônio por ter nascido em junho, dia de Santo Antônio, no dia 13, sexta-feira, quase às 13 horas, na cidade de Araras (dá pra ver pela cara de caipira, né?) uma cidadezinha do interior, a mais “bonita do ramal” da Paulista, diziam naquela época.

2 - Tenho certeza que sim (risos)! Então vamos começar lá do princípio. Como iniciou essa sua paixão pelos Quadrinhos? Você foi daqueles enfeitiçados pela magia das HQs ainda na infância? Qual foi o primeiro quadrinho que leu, que te "fisgou"?

Desde moleque!!! A idade não sei, mas foi tão logo ganhei um álbum das aventuras do Reco-Reco, Bolão e Azeitona, do incrível Luiz Sá! Os personagens saiam na revista Tico-Tico e eram, na época, os mais queridos da garotada. Segundo o cartunista Fortuna, Luiz Sá produziu o primeiro desenho animado brasileiro, lá pelos anos 40. Eu era criança e recortava e colecionava as tiras em quadrinhos das histórias de Regina Mellilo de Souza, publicadas na revista Ave Maria, que minha mãe assinava. Já quando eu estava na USP, há anos atrás, pensei em encontrar Dona Regina e escrever alguma coisa sobre ela, uma das primeiras quadrinhistas de São Paulo, infelizmente desconhecida do público. Descobri que ela ainda vivia, consegui seu endereço e telefone. Encontrei então em uma mansão próxima da TV Bandeirantes, uma velhinha bem disposta, lépida, subindo e descendo a escadaria do palacete, sobraçando uns livros que fora buscar. Era certamente uma das remanescentes das famílias paulistas quatrocentonas de boa fortuna. Ao sair me presenteou com dois daqueles livrinhos de quadrinhos publicados por ela. Mas, o tempo passou e não pude divulgar a vida e obra dessa  pioneira solitária.

Depois veio o jornal A Gazetinha, onde Belmonte, o caricaturista mais badalado de então, traçou  seus primeiros e únicos quadrinhos em linda capa colorida e inventou a curiosa seção "Cartas Enigmáticas", que dava muitos prêmios, inclusive um Balila, um minúsculo carrinho de verdade, da FIAT, com dois lugares.

 Para suprir a importação de quadrinhos americanos na Gazetinha, lá estava  o saudoso e iconorrágico Messias de Mello, que nutria o jornalzinho com nada menos que 11 das 16 páginas das três edições semanais, entre elas, uma ou duas HQs simultâneas. Era época da segunda guerra, e o Brasil já estava  invadido pelo sucesso dos super-heróis americanos: Tocha Humana, Príncipe Submarino, Tarzan e tantos outros, nas edições semanais e mensais da EBAL. Logo depois, a  Rio Gráfica Editora (atual Globo) passou a publicar esses personagens também, quando o Roberto Marinho deu um golpe quase mortal na EBAL, ao comprar os direitos de publicação de muitos dos heróis que antes eram fornecidos à EBAL. Nessa época, todos os meses eu corria até à casa do jornaleiro (os tempos eram outros, nas cidades do interior não havia bancas de jornais), para  comprar o Globo Juvenil, que tinha chegado.

3 - A exemplo do Álvaro de Moya você também chegou a fazer Quadrinhos, desenhando alguma coisa antes de optar por ser um teórico, um pesquisador?

Nunca cheguei a desenhar nada, muito menos Quadrinhos! Embora eu passasse horas a copiar os musculosos super-heróis, pois era como eu gostaria de ser na época (risos)!...

4 - Você, a Sônia Luyten e o Moacy Cirne foram os primeiros acadêmicos das HQs no Brasil, não? Em que ano você começou a construir sua carreira acadêmica e quais foram as dificuldades enfrentadas, já que na época os Quadrinhos ainda não tinham a popularidade e aceitação que possuem hoje? Conte um pouco dessa época pra gente.

Não é bem assim. Na verdade estávamos na “Era de Ouro” dos gibis! É verdade que os pais, professores e todo mundo julgavam os Quadrinhos uma leitura perniciosa, que só tratava de crimes, e nos tiravam das mãos todo gibi que líamos, pra depois nós lermos às escondidas (risos). Mas, mesmo assim, a popularidade e o consumo dos Quadrinhos americanos, alimentados pelos Syndicates, foi gigantesca! Depois de atingir o período áureo, na década de 30 a 50, com Buck  Rogers, Tarzan (de Hal Foster), Fantasma, Mandrake, Flash Gordon (saiba mais sobre esses e outros personagens aqui), etc, os Quadrinhos dominaram o mundo inteiro numa grande invasão. Os gibis conquistaram, então, os adultos e, nos anos 60, ingressaram também nas universidades.

Doutores professores da Universidade de Sorbonne, em Paris, impulsionados por essa popularidade, e fanáticos pela "bande déssinées", deram início aos estudos dessa narrativa seqüencial, convictos do seu profundo significado na documentação histórica e artística de uma época. Francis Lacassin, Evelyne Sullerot, Umberto Eco (da Itália), e outros intelectuais e editores, organizaram a 1ª Exposição Internacional no Louvre, em Paris. Em 1965, veio 1º Congresso Internazionale de Fumetti, em Lucca, na Itália. Esses pioneiros levaram os Quadrinhos ao nível de estudos acadêmicos e científicos, e não deixavam por menos senão considerar essa nova arte popular em a Nona Arte!

A bem da verdade, no entanto, deve-se creditar ao Álvaro de Moya e aos seus jovens colegas, os primeiros estudos de Histórias em Quadrinhos com a sua exposição de 1950, como foi reconhecido e registrado pelos estudiosos da Europa. Em 1970, foi organizado, com eficiente articulação do Moya, o 1º Festival de Histórias em Quadrinhos, com a participação de muitos renomados quadrinhistas americanos, franceses e italianos, entre os quais estudiosos e editores franceses. Em seguida vieram Sônia Luyten e Moacy Cirne, este com uma das primeiras publicações sobre Quadrinhos. Eu fui aluno da Sônia no curso que ministrava no departamento de Jornalismo da USP, em 1973.

5 - Puxa! E quem foi o primeiro "Doutor" em Quadrinhos no Brasil, afinal?!?

O primeiro doutor, aliás uma doutora, foi a Zilda Augusta Anselmo, com a tese de um estudo interessante sobre a leitura dos Quadrinhos nas escolas elementares. Está no livro "História em Quadrinhos", publicado pela editora Vozes, em 1975, pouco antes do meu.

6 - Eu tenho esse livro!!! Em 1975 você lançou o seu livro "Os Quadrinhos", pela Editora Ática, em que analisava a linguagem das HQs. Esse livro se tornou um marco do gênero e referencial para os estudiosos do ramo. Fale um pouco sobre esse livro, do quão você o considera importante.

Ser o  primeiro em alguma coisa é sempre bom! O "Os Quadrinhos" não tem tanta importância, mas é o primeiro estudo semiológico sobre as estrutura das Histórias em Quadrinhos no Brasil, talvez seja o primeiro trabalho universitário no gênero! Mas para mim o que é realmente importante, é o prefácio do meu grande mestre e orientador de tese, o Prof. Antônio Cândido de Mello e Souza; a pequena nota do Sérgio Augusto, nosso primeiro crítico de quadrinhos, que me deixou bastante lisonjeado; e também a referência na Revue Communications, de Paris, em 1975. Hoje, diante dos avanços da semiótica, o livrinho já se encontra bastante defasado, merecia uma revisão radical, se pensar em republicar. Mas minhas esperanças de reedição, no entanto foram pro brejo, o livro ia ser reeditado pela Opera Graphica, do Franco de Rosa, mas a editora fechou as portas.

7 - AH! Essa era minha próxima pergunta (risos)! Por que seu livro e os do Moacy Cirne, como o "BUM" por exemplo, nunca foram reimpressos, se o "Shazam", do Álvaro de Moya (organizador) está nas livrarias até hoje?

Creio que aos temas tratados nas publicações cabe a maior ou menor aceitação e procura  pelos leitores. Poucos se encantam com assuntos teóricos, que geralmente são áridos e, por isso mesmo, muito chatos. O Cirne, enquanto trabalhava na Editora Vozes, publicou uma série de artigos fundamentais e tem um livro sobre os aspectos sociológicos e também políticos dos quadrinhos, e sobre sua influência nos leitores. Hoje, ele anda sumido.

Os estudos semióticos, como os do "Os Quadrinhos", devem ser tão soporíferos como pouco deglutíveis. O Moya, ao contrário, versa sobre as história dos Quadrinhos que, por si, atrai os fãs. Ademais, pôde rechear sua narrativa dos mitos da arte seqüencial com fatos e exemplos curiosos de grandes nomes de astros americanos, com os quais  manteve contatos e  vivência pessoal, como  Alex Raymond, Al Capp, Burne Hogath, Lee Falk, Milton Caniff e tantos outros europeus, o que aumenta os atrativos de seus livros.

Já tentei encontrar um editor pro meu livro. Fiz uma revisão demorada e exaustiva do texto, na esperança de uma 2ª edição. Mas, a única proposta que eu tinha era a do Franco.

8 – Ô, senhores editores do Brasil!!! Reeditem o livro do Cagnin aí, pô (risos)!! Eu vou fazer a campanha "Adotem o livro do Cagnin" (risos)! Há quantos anos você dá aulas de disciplinas ligadas aos Quadrinhos? Você teve alguns alunos famosos nesses anos todos, que hoje são nomes importantes no cenário nacional?

Na verdade com as aulas de Quadrinhos, desde 1984, quando, por concurso, ingressei no departamento de Cinema, Rádio e TV da USP.  Antes, como professor de língua e literatura portuguesa, na rede oficial de ensino, incentivava os alunos a leitura dos gibis, a fim de, com observações e comentários, aumentar-lhes o conhecimento que já traziam e mostrar-lhes as diferenças entre narração em textos escritos e a de imagens dos Quadrinhos. Às vezes, alguns exercícios de preencher os diálogos entre as personagens dos balões de historinhas “mudas” das tiras publicadas em jornais, ou o inverso, de eliminar os textos dos balões para verificar se as imagens conseguem, de fato, contar alguma piada ou história.

Na USP, encontrei completamente abandonado num canto da Biblioteca, todo o acervo do Museu de Quadrinhos, organizado pela Sônia com  a coleção que o Prof. José Marques de Melo havia adquirido. Isso porque a chefe do setor não queria saber de gibi num Departamento de Jornalismo. Consegui estantes e uma sala pequena, mas exclusiva pra quadrinhos, organizei todas as revistas por gênero e ordem alfabética. Os que me substituíram puseram então alunos para cuidar do acervo, considerando-a como se fosse uma gibiteca. Me bati muito pra que isso não acontecesse, pra que fosse considerado um lugar de pesquisa, onde só poderiam entrar pessoas credenciadas e  interessadas no assunto. Mesmo assim muitas revistinhas sumiram. Hoje, na Biblioteca da ECA, há uma sala especial de quadrinhos, com estantes corrediças, ar condicionado, todos as revistas convenientemente protegidas em caixas, especialmente revisadas e classificadas por bibliotecárias competentes.

O maior orgulho foi conseguir, logo que ingressei na USP,  a coleção completa da Gazetinha, o primeiro jornal de São Paulo só pra crianças. A coleção também estava amontoada no chão, num canto do Arquivo da Gazeta, no prédio da Folha. Escrevi pro Frias, que me passou pra Fundação Cásper Líbero. Com o argumento de que ela ficaria sob a responsabilidade da USP, bem conservada, que iríamos restaurá-la, consegui fazer com que engolissem a pílula e passassem a coleção em troca de uma cópia em microfilme PB. O Arquivista da Fundação até chorou quando fomos buscar os 20 volumes. O diretor da ECA conseguiu uma verba da Reitoria e a coleção foi levada à Biblioteca Nacional do Rio, onde foi completamente restaurada, folha por folha e até recebeu nova encadernação e capa novas. Quando não sonhávamos ainda com a informática e CDs, o publicitário e animador Daniel Messias, em homenagem ao pai, o Messias de Mello (que foi ilustrador da Gazetinha), ainda vivo na época, copiou a coleção em filme cinematográfico financiado pelo José Mindlin.

Pensei até num projeto de História em Quadrinhos no Brasil, com um banco de dados completo dos quadrinhistas e obras, de editoras e trabalhos críticos. Um trabalho gigantesco e insano, que seria realizável apenas com um bela equipe de interessados em pesquisa e uma boa verba, o que é difícil de conseguir nessa área. Desisti. Talvez, hoje, com a internet, se possa ainda pensar no caso.

No primeiro ano de USP, “me convidei” a assumir as aulas de Quadrinhos deixadas pela Sônia, que deixara o Departamento de Jornalismo e seguira com o marido Joseph e filhas para dar aulas de cultura brasileira no Japão. Ressuscitei, então a Quadreca, revistinha de Trabalhos de Fim de Curso dos alunos, também fundada por eles. O mais importante é que a Quadreca, depois do número 10 organizado por mim, passou a fazer parte do currículo do jornalismo com edição obrigatória do curso de Quadrinhos. Infelizmente não sei se ainda está funcionando, no entanto, a Quadreca, nestes 10 anos que estou fora, não passou do número 14. Agora penso em divulgar os quadrinhos de Angelo Agostini em palestras e projeções em escolas e universidades.

9 - Você se tornou o maior especialista mundial na vida e obra de Angelo Agostini. Por que esse interesse todo? Dê uma noção da real importância de Agostini não só para o Brasil, mas para o Quadrinho e a imprensa libertária global.

Deixe o especialista e o mundial de lado. De fato me entreguei desde 1986  às pesquisas sobre a vida e obra de Agostini. Quem me dera fossem 24 anos contínuos de pesquisa, mas o trabalho e a sobrevivência não permitiram senão poucos dias ou horas respigando informações e dados aqui e ali, nas bibliotecas, lugares e pessoas, com quem e onde pudesse encontrá-los.

O interesse começou quando em 1986 fui à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, em busca das primeiras Histórias em Quadrinhos brasileiras do século 19, para saber se os americanos foram mesmo os primeiros, os inventores dos comics, como diziam, ou se o Brasil já tinha Histórias em Quadrinhos antes dos americanos. Encontrei na publicação "Ilustração Brazileira", de 1854, duas páginas do “Namoro, quadros ao vivo” (note a expressão tomada, hoje, por programas de TV ), desenhada por Sisson, desenhista francês. É a primeira História em Quadrinhos do Brasil! Depois, muitas tiras em dois quadrinhos, diversas só com silhuetas, talvez moda da época. Deparei-me então com Agostini nas "Aventuras de Nhô Quim", de 1869, e nas do "Zé Caipora", de 1876. Embevecido diante do belo desenho e sobretudo da seqüencialidade das imagens nos capítulos 12 ao 15 do Zé Caipora perseguido pela onça. De dar inveja ao próprio Burne Hogarth, do Tarzan! Eliminou até a moldura dos quadrinhos pra aumentar o dinamismo da ação! O mesmo se repete no capítulo 22, com maior dramaticidade ainda no salvamento de Inaiá; a bela índia enamorada do Zé. 

Os capítulos são autênticos story-boards, prontos pra animação, bastam-lhe apenas mais uns quadrinhos entre os já desenhados. Isso 30 anos antes dos filmes inventados pelos irmãos Pathé, da França. É o que disse Monteiro Lobato: “Danado esse Agostini, vê-se suas cenas como no cinema!". Além de outras técnicas que só agora são empregadas pelos quadrinhistas, Agostini, mais conhecido como caricaturista, é na verdade um contador de histórias nato. Transformava tudo, caricaturas, reportagens, até cartas e, é claro, histórias... em Quadrinhos! Agostini é uma escola em si! Temos  que destacar nele o jornalista, o repórter do lápis, engajado, desde quando fez o 1º jornal ilustrado de São Paulo, o Diabo Coxo, no jornalismo opinativo  para moralizar a política, para a formação da opinião pública como quando exerceu todo o poder das imagens em duas campanhas memoráveis: da libertação dos escravos negros e da República!

Tudo o que fez foi a concretização do que sonhara, registrado nas suas palavras, quando aos 17 anos chegou no Brasil, vindo da Itália: “A América era meu sonho de artista, o meu futuro!”. Infelizmente deve ter errado de América, o Brasil de então não tinha condições de lhe divulgar as obras e o nome e de ser um dos maiores quadrinhistas do mundo.

10 - Você está com um livro pronto sobre Agostini. O que tem nesse livro e quando ele sairá?

Não. Infelizmente ainda não há nada pronto. O que tenho são muitas horas de pesquisa realizada durante todo esse tempo, cuidadosamente arquivada para que o estudo e análise do material façam surgir a inteira fisionomia do Agostini, que até hoje não foi encontrada nos trabalhos e escritos dos historiadores, que, por falta inexplicada de dados, se demoraram na apreciação da obra.

As pinturas e fotos da época registraram os lugares e pessoas, estas preparadas em poses pomposas, a fim de que o resultado fosse melhor que o original. Já o legado dos desenhos de Agostini, ao contrário, é o único retrato vivo e fiel dos fatos do Segundo Império, em que além das imagens, se destacam comentários sobre todos os momentos decisivos da história e da política do Brasil, como a Guerra do Paraguai, da Abolição dos escravos e da República.

Falta-nos, portanto, esboçar uma biografia, não mero perfil e comportamento desse homem genial de muitas facetas, cristalizadas num artista engajado no jornalismo opinativo e ativista. É o que eu, pretensioso, tentava escrever, mas fui desencorajado pela falta de dados e de informações fundamentais, como também pela minha pouca qualidade de escritor. Diante dos dois fatos, o melhor que faço é deixar ou repassar os dados já colhidos para que continuem a pesquisa e realizem o sonho.

11 - Durante muitas décadas ninguém falava sobre Agostini, ele foi literalmente ignorado. Mas agora que sua morte completou 100 anos (em 2010), surgiram vários livros sobre ele e os estudiosos começaram a lhe dar a devida atenção. Por que acha que demoraram tanto pra descobrir Agostini?

De fato, Agostini foi injustamente o grande esquecido nessa história toda! Logo depois de sua morte não se falou mais dele. Nem os descendentes procuraram zelar pelo seu nome. O túmulo no cemitério São João Batista, no Rio, está totalmente abandonado, nenhuma inscrição o identifica, a lápide, em pedaços, está caída no centro, pondo-o aos efeitos das águas da chuva. Depois de 1910, ano de sua morte, Frei Sinzig fez-lhe uma breve menção; Monteiro Lobato, em 1932, lhe dedicou, no seu delicioso estilo, umas 5 páginas do artigo “A Caricatura no Brasil” no livro Idéias de Jeca Tatu; muito depois, em 1966, Herman Lima em sete páginas e em muitas passagens da sua monumental “História da Caricatura no Brasil” não se cansa de elogiar-lhe a obra. As demais menções que aparecem na mídia, são press releases, repetindo o que foi publicado, em 1943, por ocasião do centenário do seu nascimento.

Estive no Rio em meados de setembro, convidado a mostrar minha pesquisa no seminário dos “100 anos de Angelo Agostini”, realizado pela Fundação da Casa de Rui Barbosa. Em cada um dos três dias, cinco palestras de professores de várias universidades falaram sobre os diversos aspectos da obra de Agostini. Muito pretensioso talvez, não deixei de atribuir tal interesse ao que falei de Agostini em meus artigos e exposições em São Paulo e no interior, em Brasília, em Sergipe e Fortaleza, em  Paris, em Milão e em Rotterdan.

12 - Na sua opinião, o trabalho, a mensagem e atitude de Agostini ainda são atuais nos dias de hoje? O que os quadrinhistas de hoje podem (e devem) aprender com Agostini?

Agostini é atualíssimo, o que falta é conhecê-lo! A sua coragem, sobretudo, é notória! São exemplos o processo contra seu jornal "O Cabrião", motivado por ter feito uma caricatura denunciando a farra de Finados, com dança e bebida, diante do cemitério da Consolação em São Paulo; os violentos ataques ao governador da Província, no jornal "Diabo Coxo". E novamente no "Cabrião", uma charge que mostrava o governo recrutando, a laço e pauladas, os soldados para a Guerra do Paraguai, lhe valeram a devassa nas oficinas do seu jornal. No Rio, por causa de uma caricatura do Duque de Caxias, considerada ofensiva ao grande “herói” da guerra do Paraguai, um jornalista pediu que fossem expulsos do Brasil os três caricaturistas estrangeiros, ele, o português Bordalo e o italiano Borgomainerio. Agostini literalmente acabou com aquele jornalista nas duas edições da Revista Ilustrada! Dias depois José do Patrocínio lhe perguntou: "- O que você faria se fosse expulso do Brasil?", no que ele respondeu tranquilamente: "- Faria a História Ilustrada do Brasil!". Talvez hoje dissesse: "- A História em Quadrinhos do Brasil!".

Quanto a arte dos Quadrinhos é aquilo que já disse anteriormente. Nos Quadrinhos, Agostini já era dono de uma técnica avançada, como se pode observar nos seus trabalhos. As 4 páginas semanais das suas revistas eram desenhadas diretamente com toda perfeição, como sempre fez nos 46 anos de suas atividades jornalísticas! É de imaginar ainda, como um só desenhista enfrentava o trabalho de passar os assuntos na pedra (litogravura), de dirigir a editora da maior revista do país na época, de buscar a notícia e de como bolar os acontecimentos em imagem. Só um gênio pra conseguir fazer tudo isso!

13 - Vocêe acha cabível um paralelo entre Agostini e o Ziraldo e o Jaguar por exemplo? Afinal, Ziraldo e Jaguar foram dois dos chargistas mais ativos contra a ditadura e também fundaram um jornal revolucionário e extremamente politizado em sua época, o "Pasquim". Seria o "Pasquim", o "Diabo Coxo" de sua geração?

Creio que sim! Todavia os tempos eram outros. Agostini nunca foi molestado por D. Pedro II, enquanto governo imperial. Suportava pacientemente e até apreciava as críticas e caricaturas feitas contra ele.  Ao contrário, as ameaças, vinham diretamente das pessoas, vítimas de seu escárnio. Em São Paulo, de Tavares Bastos, o governador da Província, que empastelou e arrasou a sua editora. Foi, então, obrigado a fugir para o Rio com sua mãe e padrasto. No Rio, além da expulsão, de que falamos, sofreu fortes ameaças de morte dos escravocratas, especialmente do senhor da maior fazenda  de escravos de Vassouras e pai da moça, aluna de Agostini, com quem teve uma filha, apenas dois meses antes da libertação dos escravos. Mas só foi para bem longe do país, por insistência da tia da jovem que temia o perigo para ela e o bebê. Em 18 de outubro de 1888, exilou-se com mulher e filha em Paris. O caso foi tamanho que só voltou do exílio em 1894, 6 anos depois .

14 - Como você compara a grande imprensa burguesa e reacionária da época de Agostini com a grande imprensa atual? As coisas mudaram ou no fundo ainda é a mesma coisa?

Os jornais do século 19 eram instrumentos pessoais, criados facilmente a baixo custo, com um objetivo único de servir às idéias, ou melhor, aos interesses do seu proprietários. Neste fato,  encontra-se a diferença dos jornais de Agostini. Jamais admitiu uma peça publicitária que o impedisse de manifestar suas idéias e criticas, nunca esteve compromissado com ninguém senão com seu ideal e a verdade, sem rabo preso, como dizemos hoje, totalmente livre! Para dizer "na cara” o que pensava a respeito da sociedade e dos desmandos e da corrupção que grassavam entre os políticos, sobretudo, no governo. Não poupava ninguém, fosse lá de quem fosse a vítima de sua mordaz e corrosiva caricatura.

Agora, a grande imprensa, inaugurada no Brasil em 1895, pelo jornal "Província de São Paulo", atual "Estadão", pertence a um grupo de famílias. Favorecida por maquinários modernos, tem por objetivo as grandes tiragens, em consequência, o grande consumo e os polpudos lucros. Os surpreendentes furos de reportagem lhe garantem crescimento no Ibope, nas vendas e nas assinaturas. A publicidade lhe é outra bem acolhida fonte de renda. Não é de estranhar, portanto que se afaste com freqüência da meta que por sua natureza deve alcançar: a informação estritamente cingida à verdade dos fatos.

15 - Esse será o seu segundo livro. Por que você não escreveu outros livros nesses anos todos? Um autor como você teria muito a contribuir com o cenário.

Falta de tempo! Minha intenção, ou pretensão, era de escrever a vida de Agostini, ao contrário de todos os escritores que, na falta de documentação, apenas discursaram sobre sua obras. Pretendia traçar-lhe o perfil, desvendar os mistérios que envolvem sua existência, mas de sua vida, Herman Lima, por exemplo, nos 4 volumes de sua "História da Caricatura no Brasil" só registra esta frase: "Esse piemontês que nasceu em Farcelli...". Notar ainda o erro inexplicado, Farcelli não existe, mas sim Vercelli, no Piemonte, cidade próxima de Milão. De Agostini restaram apenas uns 6 retratos, dos quais 3 fotos, os outros, desenhos; os banhos ou proclamas de casamento; e o pedido, de próprio punho, para conseguir ser naturalizado brasileiro; não mais que 2 cartas escritas de Paris. Das obras, contam-se umas 10 coleções completas da Revista Ilustrada e das demais, do Arlequins, da Vida Fluminense, do Mosquito, do Mequetrefe, apenas uma de cada título, conservadas a sete chaves na Biblioteca Nacional. Somos realmente um país sem memória!

16 - O que você espera do Quadrinho Brasileiro? Acredita num futuro melhor?

Acredito, desde que busquemos valorizar o que é nosso! O Quadrinho brasileiro deveria se libertar do domínio americano! Ainda povoamos nosso imaginário com heróis alienígenas de capa e máscara, que nada tem a ver com nossa história e cultura. Além das cores, dos belos traços e da diagramação e dos enquadramentos cinematográficos, é preciso trabalhar com o potencial significativo e descritivo da imagem, e com a seqüencialidade narrativa dos quadros, deixando à palavra somente o que for complementar à narração  O essencial, porém , é achar o próprio caminho com a marca da brasilidade, trabalhar com temas nacionais, matizados  pela riqueza das  inúmeras cores do imenso território, povoado de um sem-número de povos com todas as formas de lendas e costumes que formam nossa cultura.

17 - Se você entrasse na Máquina do Tempo do Professor Pardal, voltasse na época de Agostini e o encontrasse pessoalmente, o que faria? O que diria a ele?

Não sei exatamente. A emoção seria grande! Certamente pediria um autógrafo do Agostini no álbum das Aventuras do Zé Caipora, que e ele acabara de publicar no último dia 14 de janeiro de 1888 (risos)!...

18 - Pra encerrar, resuma em poucas palavras quem foi Angelo Agostini e quem é Antonio Luiz Cagnin.

Angelo é o grande artista dos Quadrinhos, o novo cavaleiro da esperança que amou extremamente o Brasil! O repórter do lápis que o defendeu corajosamente, vergastando os corruptos; e que, afinal realizou seu sonho de artista, ao legar, nos belos traços e graça de toda a sua obra, um retrato vivo de nossa História!

O Antônio Luiz também, há muito acalenta um sonho, num trabalho silente e ininterrupto, de buscar para Angelo Agostini a revelação para todo o mundo de sua obra impressionantemente bela, a recuperação de sua imagem lamentavelmente esquecida, e render-lhe a homenagem injustamente negada até hoje!

19 - Depois dessa, chorei! Palmas pro Mestrão Cagnin!!! Muito obrigado pela entrevista e pela lição de vida, Mestre! Deus o abençoe e lhe conceda ainda muita estrada e saúde!

Eu que agradeço a todos vocês do Bigorna. Felicidades!...

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