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Entrevista: Márcio Salerno, um homem de palavra
Por Marcio Baraldi
20/12/2006

As capas de alguns dos livros escritos por Márcio Salerno

  
Márcio Salerno
é um homem de palavra! Aliás, de muitas palavras! Pois este carioca entrincheirado nos subterrâneos de Petrópolis, cidade com a qual mantém uma borbulhante relação de amor e ódio,tem um fervor criativo que, tal qual vulcão literário, expele jorros e mais jorros de palavras ardentes como brasa. Muito bem influenciado por William Burroughs e HP Lovecraft, Salerno moldou seu texto com um pé na literatura beatnik e o outro na viajeira fantástica-existencial. Casado fisica e liricamente com a também escritora Miriam Carmo, os dois unidos formam “Mariam”, editora pela qual dão à luz suas crias literárias. E dá-lhe crias, só Salerno tem sete livros: O fantasma de William Lee, Atratores Estranhos, As aventuras de Timothy O’Punk, entre outros. Como também é viciado em Quadrinhos, Salerno não se faz de rogado e se arrisca nos riscos, riscando suas próprias HQs existenciais como no fanzine Pilgrins e nas Aventuras de Timothy O’Punk. Também é autor, pela editora Marca de Fantasia, do livro Miracleman: Um outro mito ariano, onde analisa a obra de Alan Moore como super-herói Miracleman e lhe traça um paralelo com a filosofia de Nietzche. Enfim, já deu pra sentir que o cabra não é fraco não, né? Pois pra falar sobre tudo isso e muito mais, Marcião concedeu esta entrevista exclusiva ao Bigorna.net. E falou mesmo! Afinal Márcio Salerno é um homem de palavra!

Você ainda é um garotão com pouco mais de 5 décadas de vida. Quanto anos você tinha quando descobriu sua veia literária? Você vem de uma família de escritores ou de, no mínimo, incentivadores da literatura?

A veia pintou quando eu tinha cerca de 11 anos de idade, via Edgar Allan Poe. A partir daí, fui conhecendo outras coisas, literatura que me levou ao rock, vice-versa, passeios pelo jazz, música concreta, eletrônica, etc. Não, ninguém na minha família é escritor, nem fui incentivado neste sentido por ela. Acho que, quando as coisas têm de ser, são.

Você tem grande queda pelo movimento literario “beatnik”, sobretudo William Burroughs. Você curte apenas o estilo literário em si ou também vivenciou o estilo de vida desses escritores, ou seja, pé na estrada, muito sexo, muita droga e uma boa dose de desencanto com a vida?

Burroughs, como escritor, não tem paralelos, apesar de eu achar seu estilo de vida bastante promíscuo. Nada na vivência dele me influencia, mas em termos de literatura, repito, não há comparação. Não cheguei a vivenciar muito do estilo de vida do pessoal, não mergulhei nas drogas nem no sexo livre, acho que minha experiência com este último pode ser considerada normal, nada de excessos e, hoje, já sou meio oldie para dar muitos tratos à bola a esse respeito e estou bem aprumado com minha companheira, Miriam, que foi atriz, é artesã e trabalha com terapias alternativas, atualmente. O pé na estrada, de vez em quando ainda boto (com mochila nas costas e tudo!). Quanto ao desencanto com a vida, infelizmente, já o experimentava com tenra idade. Talvez tenha sido muito Poe na cabeça, talvez eu apenas quisesse “me mostrar” para o mundo, mas acabou virando desencanto mesmo, a partir de minha vida adulta. Se foi um acidente de percurso, tenho de conviver com isto. Grande parte deste desencanto, hoje, é real e palpável (desemprego, falta de grana para aplicar em outras coisas, falta de revistas e livros para publicar meus textos, ilustrações e HQs, este tipo de coisa...).

Você também aprecia muito HP Lovecraft, autor clássico de literatura de terror e fantástico. Se você fosse escrever um livro sobre o futuro da Terra e da Humanidade, como seria este livro? Qual sua visão do futuro?

Rapaz, minha visão do futuro está repleta de miopia (e eu sou míope, mesmo!). Eu até gostaria de temer os monstros de Lovecraft, seus pesadelos, Cthulhu e os Outros Deuses, etc. Infelizmente, não tenho medo de fantasmas, tenho muito medo de gente, seres vivos que ameaçam detonar o planeta, aqui, nos States, everywhere. Ou o pessoal está mesmo muito louco ou eu, de fato, não consigo compreender o que se passa com a humanidade, desde há muito. Eu pergunto: existiu um dia sequer, na história do Homem, em que uma guerra não estivesse acontecendo em algum lugar, em que alguém não estivesse sendo oprimido, assassinado, lesado em seus direitos básicos como ser humano? É isso... quer dizer, um livro meu sobre o futuro do planeta com certeza não seria utópico. Aliás, é melhor nem escrever sobre isso... a não ser que me encomendem, claro!

Lovecraft era contemporâneo e amigo de Robert Howard (criador de Conan, o bárbaro). A obra de Howard se tornou mundialmente popular graças à quadrinização de Conan pela Marvel. Você acha que a obra de Lovecraft ainda será plenamente descoberta e popularizada, como a de Howard?

Lovecraft ainda não tem muita saída no Brasil mas, lá fora, é cult absoluto. Alan Moore publicou há pouco tempo um estudo sobre ele e sua obra, John Coulthart (que, nos anos 80, desenhou algumas capas para o grupo de rock Hawkwind) relançou o álbum The Haunter of The Dark and Other Grotesque Stories, em Quadrinhos, este ano, na Inglaterra, com introdução de Moore mais um trabalho deste a respeito dos Great Old Ones nas páginas de fechamento da obra. Muitos filmes já foram feitos baseados nele (a maioria, infelizmente, muito ruim). Se a Marvel lançasse uma HQ mensal baseada na obra dele, provavelmente também se tornaria tão famosa quanto Conan. Ou talvez não, porque não é baseado sobre um caráter só. É difícil de prever. 

Você me confessou que tem uma relação um tanto conturbada com sua cidade, Petrópolis. Você pode comentar sobre essa relação? Petrópolis estaria para você como Gotham City está para Batman (risos)?

Mas nem a pau, meu caro! Gotham City, como símbolo do Mal, apresenta aspectos interessantes em seus becos escuros que eu até gostaria de explorar. Petrópolis jamais seria berço de um Coringa. Isto aqui é, como diria um amigo da minha mulher, o fim do fim do fim... Imagine uma província que acha maravilhoso o fato do escritor austríaco Stefan Zweig ter vindo morar aqui nos anos 40, só para se suicidar, junto com sua mulher, pouco depois do Carnaval de 1942? A cidade serviu para deixá-lo tão, ou mais, down do que ele já se sentia a respeito do Nazismo e deu no que deu. Hoje, o pessoal daqui tem orgulho disso e eu não consigo entender como. A casa onde ele morou virou marco histórico, é conhecida como Casa Stefan Zweig e eu acho isso tudo mórbido demais. As coisas por aqui, infelizmente, se passam neste nível. Ou você se torna “socialite” ou é expulso do mecanismo, como aconteceu comigo. Minha obra em quadrinhos As Aventuras de Timothy O’Punk é extremamente auto-biográfica neste sentido, aquele personagem sou eu (ele até se parece comigo, fisicamente, e eu não fiz isso de forma planejada!), tentando vivenciar Petrópolis em uma outra dimensão, onde ela se tornaria uma metrópole tipo a Radiant City dos Quadrinhos do Mister X. Mas acho que ela está, sempre esteve e sempre vai estar mesmo é para Somnópolis, como aquela cidade também é conhecida. E o pessoal segue dormindo...

Você curte William Burroughs, que é um escritor “maldito” americano. Mas e os brasileiros? Você não curte um Plínio Marcos ou Dalton Trevisan, por exemplo, os “marditos” brasileiros?

Até curto, principalmente o Trevisan, de quem já li alguns livros que gostei bastante. O Plínio Marcos eu cheguei a ver pessoalmente, na década de 80, quando morava e trabalhava em São Paulo, lá na região dos grandes bancos, onde ele se postava, junto com um caixote de frutas, colocando seus livros ali em cima e tentando vendê-los aos passantes e a quem entrasse em um espaço que já tinha abrigado um grande banco e, na ocasião, tinha virado um centro popular de cultura. Aliás, esta visão do Plínio me assombra até hoje. Um cara que tinha muito o que dizer acabar nas ruas, tentando vender seus livros a preço de banana. Isso é muito triste, ainda mais quando você começa a vivenciar a coisa na pele e sente que compreende profundamente a angústia que deve ter tomado a mente e o coração do Plínio, principalmente na hora de encostar a cabeça no travesseiro... Esse é o Brasil, infelizmente. Ei, tem outros “marditos” interessantes, como Rubem Fonseca e o poeta Roberto Piva.

Nos Quadrinhos, ao que tudo indica, você aprecia os autores “cerebrais”, como Alan Moore e Neil Gaiman, certo? Faça uma “árvore genealógica” dos Quadrinhos que você curtiu e curte. Começou com o que e chegou aonde?

Comecei com coisas como Capitão Marvel, Superman, Batman (que eu só fui curtir melhor depois que Denny O’Neil e Neal Adams o revitalizaram, em 1969), Jack Marvel, Brasinha, Gasparzinho, estas coisas. Qual não foi minha surpresa quando Moore revitalizou Jack Marvel nos anos 80 como Marvelman, que depois virou Miracleman, nos anos 80 e, hoje, continua no limbo, cheio de processos na indústria. Depois disso, mergulhei de cabeça na literatura, via Poe, depois coisas como Aldous Huxley, William Blake, os beats, coisas que também influenciaram muito o mundo de Moore, Gaiman (de quem eu curto muito o Sandman, o trabalho que ele fez com o Miracleman, etc., mas cujos livros, na minha opinião, deixam muito a desejar), J.M. de Matteis, etc. Na verdade, quando você começa a se interessar pelo universo alternativo, uma coisa leva a outra, que te traz de volta para uma coisa, que vai desaguar em outra coisa, até você perceber que, de fato, “it’s a small world...”.

Fale um pouco sobre seu livro sobre Miracleman. Este personagem, como todos sabem, era um Capitão Marvel de quinta categoria. Como ele se tornou um personagem tão interessante a ponto de merecer uma análise nieztchiana?

Sim, ele foi criado na Inglaterra, nos anos 50, por Mick Anglo, quando a Marvel Comics ameaçou fechar as portas da Fawcett, que publicava um personagem com o nome de sua editora. Quando o título foi cancelado e o pessoal ficou sem histórias para publicar na Inglaterra, Anglo criou um herói mais ou menos semelhante, mas com um detalhe: absolutamente branco, cabelo loiro escovinha, etc. o que lembrava em muito o Übermansch, o homem superior preconizado por Nietzsche e que, depois, foi incorporado pela desejo de uma raça superior de Hitler e seus asseclas. Anglo não explorou isso, pelo menos não profundamente, nos anos 50 e início dos 60 (a revista foi cancelada em 1962). Quando Moore retomou o personagem, em 1982, percebeu isso de cara e o transformou no personagem de Quadrinhos que mais tinha a ver com a filosofia contida em Assim Falou Zarathustra, “viajando” nesta referência. Certas coisas que acontecem na trama, em especial a transformação do sidekick Kid Miracleman, uma espécie de Robin com super-poderes, na personificação do Mal tem tudo a ver com a sombra que ameaça o homem comum, da qual Nietzsche fala tanto, nesta e em outras obras. Quando Gaiman pegou o personagem, não teve tempo de terminar seu arco de histórias, pois a Eclipse Comics faliu e os processos começaram, mas ia levar o personagem até o ponto em que Miracleman e Kid Miracleman, ressuscitado dos mortos (ou trazido de volta do limbo, aí é preciso ler a história, muito difícil de encontrar hoje, ou meu livro, para saber o que se passou) vão novamente se enfrentar. Não sei se era essa a intenção de Gaiman, mas a Utopia em que os superseres transformaram o mundo estava fadada ao fracasso, com tudo voltando a ser como antes. Mas, isso a gente só vai saber se, um dia, Gaiman tiver condições de retomar o personagem e publicar o arco de histórias que falta.   

Você é formado em Letras mesmo?

Sou tradutor-intérprete (inglês/português), formado pela Faculdade Ibero-americana de Letras e Ciências Humanas de São Paulo, colei grau em 1983, embora também faça traduções do espanhol, francês e italiano.

Fale um pouco sobre a obra de sua companheira de vida e letras, Miriam Carmo. Vocês escrevem a quatro mãos? Um inspira o outro para criar? Comente um pouco sobre a obra dela e da editora de vocês, a Mariam.

Mariam infelizmente, como toda planta rara que tenta brotar em Petrópolis, é apenas um selo, através do qual lançamos, às nossas custas, lógico, alguns livros meus e dois em parceria, o Isto não é aquilo, um mix de poemas e ensaios curtos, a respeito do amor que temos um pelo outro e a respeito da estupidez da “inteligentsia” petropolitana, que nos joga de lado simplesmente pelo fato de não termos filiação política com nenhum partido, seja o que está no poder, sejam outros. No meu caso, sou, sempre fui e sempre serei Anarquista de carteirinha, embora isto seja uma coisa complicada no mundo, hoje. Mas eu não me importo... Já o Sobre tempos e peregrinações são contos que eu e ela escrevemos, inclusive um a quatro mãos, quando um não sabia o que o outro tinha escrito e, no final, acabou tendo uma lógica própria. Nossos estilos são bem diferentes, mas podem se complementar em determinados contextos, e esta diversidade contribui para a riqueza de detalhes, quando trabalhamos juntos.  Há que se levar em consideração, também, o fato de eu e ela termos sido alvo de muita inveja e ira de algumas pessoas ligadas à cultura em Petrópolis (a inveja é a arma dos incompetentes, sabe como é), ela um pouco antes de mim (ela foi uma atriz talentosa, anos-luz distante de quem se auto-denimina “ator” ou  “atriz” por aqui) e eu, depois, a partir da década de 90, quando comecei a labutar na imprensa local. “desci o sarrafo” em vários trabalhos de quinta categoria, principalmente na área teatral, que o pessoal achava que eu devia elogiar, mas não dá para elogiar lixo. Quer dizer, viramos malditos.

Se você tivesse a oportunidade de escrever histórias para algum personagem de HQs , pra qual você escreveria com prazer e identificação? Por quê?

Mister X, com certeza! O personagem já foi cancelado há muito, mas era um indivíduo estranho tentando se entender com sua cidade e nunca conseguindo isso. Batman é um personagem do qual gosto muito e poderia fazer uma leitura mais voltada para o universo de algumas histórias de terror que têm na mente, não no sangue, seu mote principal. Sandman também, seu universo é muito rico e cheio de possibilidades.

Quais seus próximos planos literários e quadrinhisticos?

Bem, estou pensando em escrever um livro sobre o trabalho de Lovecraft e algumas coisas que ele apontou, lá nos anos 20 e 30, que hoje encontram eco na realidade de muitos países, inclusive no nosso. Por trás da fantasia de Lovecraft, se escondia um indivíduo extremamente racista e cheio de medos bastante palpáveis, que nada tinham a ver com o universo fictício por ele criado. No caso dos Quadrinhos, talvez alguma coisa se concretize junto à Marca de Fantasia, mas prefiro não falar nada a respeito ainda, pois não tenho certeza ainda do que vai acontecer, pelo menos nesta altura do campeonato. Maiores detalhes em breve... E continuo (sempre!) a pintar telas, cartões e aquarelas em geral. 

Deixe um recado final para os leitores do Bigorna.net.

Continuem a prestigiar trabalhos alternativos, que não têm oportunidade de aparecer no mercado formal, pois nem todo mundo tem grana suficiente para bancar o sistema, sabem como é... O underground, mesmo meio “démodé”, ainda é a saída para nós. E obrigado pela oportunidade!

O Bigorna.net agradece a Márcio Salerno pela entrevista.

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