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Entrevista: Maria Cristina Merlo
Por Ruy Jobim Neto
07/02/2006

Maria Cristina Merlo tanto assobiou que o tico-tico pousou em cima de seu computador. A pesquisadora, que também é professora da Anhembi-Morumbi e na USP (onde se tornou mestra em 2003 com a tese sobre a revista O Tico-Tico - ainda inédita no mercado editorial), realizou um trabalho de longos três anos onde praticamente fez uma análise minuciosa da primeira publicação que editou quadrinhos no Brasil. É um belo texto. Num momento em que surgem diversos livros sobre O Tico-Tico, Maria Cristina Merlo vem trazer ao grande público mais alguns detalhes sobre o mais longevo título até hoje criado para as crianças brasileiras. Jamais haverá outra O Tico-Tico, e é isso que veremos na entrevista abaixo com a pesquisadora (vencedora do Troféu HQMix em 2004):

Conte um pouco como foi seu primeiro contado com esse universo dos desenhos. O que te levou a gostar de quadrinhos?

Aprendi a ler e a escrever com 6 anos de idade. Minha professora era minha irmã mais velha – a Marisa, com ela, eu descobri as letras, os números, as formas, os desenhos e as figuras. Brincávamos de fazer desenhos com pipocas. Os desenhos iam desde os nossos nomes até maquetes e plantas de casas. Como não tínhamos livros escolares disponíveis, ela teve a grande idéia de ensinar-me a ler e a transcrever as histórias das revistinhas que ganhávamos de presente, era o nosso livro “o gibi”, algo mágico, pois esse representou minha primeira cartilha. Ele marcou uma fase preciosa de minha infância e de formação em meu aprendizado, pois juntava as letras às figuras, aos desenhos e à imaginação que toda criança tem aos montes.

Também, serviram de distração nas brincadeiras de criança, pois meus pais não tinham recursos para disponibilizar brinquedos pra todos os filhos, e então nós brincávamos de interpretar os personagens que nossa imaginação criava. Havia um lugar e companhia preferida para lê-los... era secreto, subíamos, eu e minha irmã mais nova, numa das árvores do fundo do quintal; deitávamos num dos troncos e ficávamos horas, fascinadas, lendo as historinhas.

Como você chegou à sua pesquisa sobre O Tico-Tico?

Pretendia dar continuidade aos meus estudos acadêmicos, ideais, lecionar e melhorar meu currículo. Então, fui à USP (Universidade de São Paulo) buscar informações sobre cursos extracurriculares e quem sabe tentar uma pós-graduação; as informações obtidas no guichê da secretaria da ECA-Escola de Comunicação e Artes me ajudaram a escolher algumas disciplinas.
 
Iniciei meu aprendizado assistindo aulas como ouvinte, isso me ajudou muito a conhecer o processo de pesquisas realizadas, os professores, os participantes, a filosofia e os métodos oferecidos, e assim, conseguir ir direcionando em qual área deveria desenvolver um projeto que futuramente agregasse algo significativo para o universo acadêmico. Numa dessas aulas assistidas conheci meu orientador, o Prof. Dr. Antonio Cagnin, imediatamente houve uma empatia por esse grande estudioso e mestre em histórias em quadrinhos, sua paixão me contagiou. Cometei com ele as minhas intenções em projetos que relacionassem pesquisa, educação, público infantil, quadrinhos, animação e contos de fadas. Então, ele pediu para que desenvolvesse um projeto apenas focado na linguagem de história em quadrinhos no Brasil, e para que fosse necessário então iniciarmos a pesquisa deveríamos escolher a mais importante revista infantil e em quadrinhos publicada no Brasil, a Revista O Tico-Tico

Quais os fatores que fizeram com que você se apaixonasse pelo projeto?

Mesmo antes de saber se ingressaria na ECA, como aluna regular ou se o projeto seria aprovado, iria realizar de qualquer jeito aquela pesquisa, pois já estava apaixonada pela idéia, pelo tema, mas fiquei mais motivada pela possibilidade de realizar um trabalho que pudesse contribuir como fonte de pesquisa para outros especialistas alunos e apaixonados, como eu, por quadrinhos.

E em 1999, a convite do Prof. Dr. Antonio Cagnin, numa visita ao acervo particular do Dr. José Mindlin, considerado o maior bibliófilo do Brasil, fui apresentada a uma das pessoas mais inteligentes, gentis, educadas e apaixonadas por educação, cultura, conhecimento, artes, literatura, enfim pelo saber que tenho o prazer de conhecer. Estar semanalmente em sua biblioteca, ter o contato com suas obras raras, respirar a sabedoria das páginas que folheei durante dois anos de minha pesquisa foi uma oportunidade, um presente que recebi desde o início do meu projeto. 

Já na biblioteca, conheci os quatros volumes História da Caricatura, de Herman Lima, alguns periódicos como: O Malho, Ilustração Brasileira e pela primeira vez tive o prazer de manusear a revista O Tico-Tico. E, como era esperado, foi amor à primeira vista, fiquei entusiasmada por estar pesquisando uma das revistas mais significativas, que divertiu e encantou várias gerações, iniciou e influenciou muitos artistas, informou e formou grandes mestres da cultura brasileira.

A coleção da revista em seu acervo é a mais completa, tem desde o n.º 1, além de ter quase todos os Almanaques do Tico-Tico e alguns exemplares das coleções e edições especiais que foram publicadas durante a existência da revista. 

Posso afirmar que a nossa decisão foi certeira, com o tamanho do desafio proposto, com anos de pesquisa minuciosa em acervos particulares, público, sebos, leituras raras sobre o assunto e muita dedicação de minha parte conseguiram concretizar um dos projetos mais gratificantes de minha vida.   
 
Quais as grandes lições que O Tico-Tico deixa, em sua opinião, para a indústria editorial brasileira?

Deixou a lição da convicção, da persistência, da garra, de acreditar na educação, na formação de valores, na cultura brasileira e no respeito por seus leitores – as crianças.

Foi responsável, representou uma ponte do passado para o futuro estabelecendo diálogo editorial e conceitual com publicações as mais diversas, tanto antes como depois dela. O Tico-Tico acabou trazendo novidades ao seu público leitor, atravessou inovações tecnológicas, viu nascer e morrer um sem-número de títulos de revistas de propostas parecidas, portanto, de possíveis concorrentes. Assim, manteve inabalável, por boa parte de sua História editorial, sua posição no ranking como a mais querida e esperada pelos brasileiros. 

Que País existia em 1905, à época do lançamento da revista? Como foi a recepção a O Tico-Tico?

Existia um país provinciano, elitista, pomposo e bem limitado em suas leituras infantis. As crianças liam literaturas estrangeiras, sem muitos atrativos visuais, sem imaginação, pois as representações de outras culturas os limitavam a partir do idioma que eram obrigados a traduzir as histórias, francês ou inglês, essas histórias sem referencial cultural não se identificavam com suas próprias histórias cotidianas. Elas sentiam falta de algo original, queriam uma revistinha que elas podiam interagir, aprender, brincar, ajudá-las a naturalizar seus próprios hábitos e costumes, mas principalmente uma revista criada e dirigida apenas para elas. Que falasse sua língua, entendesse seus anseios, respeitasse suas opiniões e as tratasse como crianças.
 
Pedindo para você destacar um time de grandes desenhistas de quadrinhos da revista, que fatores você destaca como primordiais, no trabalho de cada um, que transformaram O Tico-Tico num sucesso editorial?
 
A revista foi escola e descobrimento de muitos talentos, como: desenhistas, redatores, escritores, etc. Mesmo sendo moldada a princípio no modelo estrangeiros o seu percurso a tornou um referencial no mercado editorial brasileiro.
 
Os desenhistas que fizeram parte dessa empreitada foram: Angelo Agostini, Vasco Lima, Luis Gomes Loureiro, João Ramos Lobão, Álvaro Marins, Alfredo Storni, Leônidas A. Rocha, J. Carlos, Cícero Valadares, Luiz Sá, Max Yantok, Carlos Thiré, Paulo Affonso, Miguel Hochmann, Giselda Melo, Nino Borges, Waldir Moura, Edmundo Rodrigues, etc.

Alguns desses desenhistas utilizavam pseudônimos e assinavam várias histórias com nomes diferentes, mas cada qual com seu próprio estilo, com seu talento e com sua beleza estética. A revista teve publicação semanal durante muitos anos, isso exigia que fossem hábeis, criativos e muito profissionais. 

Essa periodicidade levou os responsáveis da revista a desenvolverem uma estratégia de interação com seus leitores, os tornando colaboradores, através de conteúdos, tais como: artigos, fotos, desenhos ou apenas seus nomes nos concursos que eram publicados nas páginas das revistas. Além de isso fidelizar o público, os leitores se sentiam respeitados e afamados quando viam o que haviam enviado para a redação da revista.

Muitos desses colaboradores, depois de um período, foram trabalhar na revista e se tornaram grandes desenhistas, como foi o caso de Quirino Campofiorino: ele foi aprendiz do desenhista Luis Loureiro; após seu aprendizado se tornou desenhista oficial da revista.

Como surgiu a idéia para a redação de O Malho criar uma edição especialmente voltada para crianças, no início do século XX?

A idéia inicial em criar a revista infantil foi do desenhista Renato de Castro e dos jornalistas de O Malho, Cardoso Júnior e Manuel Bonfim. Eles fizeram a proposta para o fundador da revista O Malho, Luis Bartolomeu; demonstraram o interesse e a importância que a revista traria para a editora e que a nova revista iria influenciar sua publicação principal, tanto econômica quanto politicamente. Para não correr tanto risco numa nova publicação para um público infantil, pois não havia nenhum tipo de periódico direcionado para as crianças, ele achou melhor efetuar um levantamento ou pesquisa para verificar se havia ou não interesse nesse tipo de publicação. Aproveitou a publicação O Malho, para observar a reação das crianças e a resposta foi imediatamente positiva, o motivando a criar a revista e publicá-la pela editora O Malho em 1905.
 
Os anos finais de O Tico-Tico não foram fáceis, e ainda assim a revista resistiu a muitos fatores adversos. Você poderia nos dar mais detalhes?

Houve também períodos de necessidades e dificuldades na sua readaptação aos novos costumes e gêneros de leituras de revistas estrangeiras que começaram a competir o mesmo espaço. Para isso, a revista inseriu estratégias como: lançamento de almanaques, edições especiais e comemorativas, coleções didáticas e outras publicações que fizeram parte da Biblioteca Infantil do Tico-Tico. As histórias eram criadas e ilustradas pelos mesmos desenhistas, contistas e redatores da revista O Tico-Tico.

A partir de 1959 surge uma nova proposta expondo os critérios que nortearam a elaboração da edição, como era de praxe, mas dessa vez os diretores da revista privilegiaram outro público – os professores - para que eles aproveitassem a revista como mais um recurso didático na realização de sua tarefa, além de objetivar o esclarecimento e auxílio aos pais na hora dos afazeres escolares dos filhos.
 
As seções de cartas dos leitores fizeram boa parte do sucesso de O Tico-Tico. Que detalhes você poderia nos dar sobre a maneira pela qual a revista se comunicava com seus leitores mirins?

O Tico-Tico não se foi uma revista especificamente de histórias em quadrinhos, mas também tinha brincadeiras, passatempos, quebra-cabeças, carta enigmática, páginas de armar e muitas adivinhações. Como falei anteriormente, alguns leitores enviavam para a redação suas histórias, poesias, fotos, recadinhos, desenhos, consultas sobre moda, etiqueta, culinária e beleza, horóscopo, cuidado com animais, etc.
 
Essas seções os representavam como um porta-voz em relação às informações e esclarecimentos e muitos escreviam para essas seções usando pseudônimos.
 
O que você aprendeu durante os anos de dedicação ao estudo da primeira e mais longa publicação de quadrinhos do Brasil?
 
Aprendi que não é muito fácil ser pesquisadora num país que não oferece nenhum tipo de subsídio financeiro muito menos reconhecimento intelectual para concretizar pesquisas. Quanto à revista, percebi que muitas pessoas não sabiam da existência e nem da sua importância. Entre essas pessoas, muitos desenhistas, estudantes e professores na área de artes gráficas, visuais e comunicação.

Um outro fato que dificultou: o levantamento de informações que abordassem sobre o assunto. Hoje, não ocorre mais, talvez pelo fato da revista ter feito “100 anos” em 11 de outubro de 2005, nesse curto período, surgiram vários artigos, sites, livros sobre a revista O Tico-Tico de estudiosos, pesquisadores e professores que infelizmente não tive contato até por não saber que poderiam me ajudar em minha pesquisa.

Fico muito feliz, pois finalmente ela sai do anonimato e do esquecimento ressurgindo e batendo suas asas em nossa direção nos embelezando com sua doce e inesquecível lembrança em ser a nossa querida primeira revista infantil e em quadrinhos brasileira.         
 
Conte um detalhe curioso, alguma história a respeito dos dias em que você pesquisava e juntava material sobre O Tico-Tico. Relate as facilidades e dificuldades de uma pesquisa de tal monta no Brasil.

Um detalhe foi saber pelo meu grande amigo João Antonio, jornalista e colecionador de assuntos e revistas em quadrinhos, que havia uma entrevista sobre o assunto no MIS – Museu de Imagem e Som, na cidade do Rio de Janeiro. Aproveitei que estava há 10 dias na Biblioteca Nacional pesquisando alguns exemplares faltantes e fui até o museu pedir uma cópia da entrevista que sabia que havia sido realizado por nada mais e nada menos que: Alvarus, Carlos Drumonnd de Andrade, Luis Loureiro, Herman Lima, Campofiorino, etc.

Ao chegar no museu, setor de entrevistas, não pude ter acesso à gravação, pois tinha que solicitar uma autorização a um dos desenhistas que fizeram parte da mesma. Eu disse para a responsável desse setor que seria impossível, pois todos estariam mortos. Ela disse, então peça autorização aos seus parentes. Pedi que ela me listasse os desenhistas que fizeram parte dessa entrevista, e me surpreendeu ao ver o nome de nosso Mestre Ziraldo. Imediatamente, liguei para Anna Fortuna, filha do nosso saudoso e talentoso desenhista Fortuna e ela me passou o telefone de Ziraldo. 

Fiz a ligação ao Ziraldo, ele indignado com o tratamento aos pesquisadores nesse país, me ajudou prontamente e disse que iria deixar uma carta de autorização a minha disposição para que conseguisse uma cópia na liberação da entrevista.

Consegui a fita, transcrevi a fita e a mesma faz parte de meu trabalho juntamente com outras referências bibliográficas de escritores, poetas, jornalistas que leram e se formaram com O Tico-Tico.

Meu trabalho foi concluído em 2003, defendi minha dissertação, fui premiada no 16º HQMix com o prêmio na categoria pesquisa. Participei de palestras, congressos, encontros, entrevistas, debates, festival de humor, colaborei para com outros autores e pesquisadores em jornais, revistas e em suas dissertações.

Colaborei com informações sobre a revista, através de uma entrevista realizada, via telefone, com a coordenadora da exposição realizada no Sesc Vila Mariana. Colaborei desde o início do projeto do livro a ser lançado pela Opera Graphica juntamente com os professores Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos desde a execução até os dois capítulos escritos sobre a revista O Tico-Tico (N.do E.: esse livro foi lançado recentemente, conforme divulgado aqui).

Qual é o seu próximo projeto de pesquisa? Tem a ver com O Tico-Tico?

Estou no aguardo de uma resposta positiva, se Deus ajudar, do Ministério da Cultura, pois solicitei subsídios da Lei Rouanet para a publicação do meu livro. Com certeza, irá facilitar a parceira com uma editora para a publicação do mesmo.

Quanto a um novo projeto ou pesquisa estou decidindo, pois são tantas opções interessantes nas áreas de Comunicação, Cultura e Artes, mas com certeza a tendência será continuar realizando pesquisa histórica relacionada à nossa arte e cultura brasileira.

O Bigorna.net agradece à Maria Cristina Merlo pela entrevista, concedida em janeiro de 2006.

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