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O homem que nunca cortou as unhas
Por Laudo Ferreira Junior
22/05/2007

Recentemente o amigo e editor aqui do site Bigorna.net, Humberto Yashima, sugeriu que eu escrevesse para a Banda Mamão algo contando sobre minha participação durante algum tempo na produção de alguns Quadrinhos ligados à figura do grande José Mojica Marins, mais conhecido nas paradas como Zé do Caixão ou Mister Coffin Joe como ficou conhecido nos Estados Unidos, quando teve seus filmes lançados por lá através de uma distribuidora especializada em filmes trash, a Something Weird. Numa primeira reação, fiquei surpreso, pois já fazem muitos anos que trabalhei produzindo alguns Quadrinhos com este personagem e confesso não estava “fresco em minha memória” isso e mesmo adorando a figura do amigo José Mojica, o título que levei durante algum tempo de “desenhista do Zé do Caixão” em um primeiro tempo me incomodou.
           
Fui um garoto, como muitos por aí, fãs de Quadrinhos, que cresceram lendo Batman, Capitão América (morreu, coitado...), Hulk, enfim, aquela batelada de super-heróis clássicos, mas por outro lado não sei explicar até hoje qual o motivo verdadeiro, lia muito, mas muito mesmo material nacional. Era meados dos anos 1970, ditadura militar no auge e entre algumas coisas tupiniquins que me caiam às mãos, HQs de terror eram um dos meus pratos preferidos para degustar. Um dos mestres do gênero, Nico Rosso, e suas HQs sombrias e suas mulheres esguias e sensualíssimas definitivamente me fizeram a cabeça. Mas nunca tive muito jeito pra desenhar terror.

Embora tenha dado meus chutes aqui ou ali, há algo imprescindível no gênero que não é comigo. Mas, por volta de 1992, já atuante, ou melhor “tentando ser”, esta é a definição mais correta, no meio dos Quadrinhos nacionais, em uma daquelas idéias que você não sabe ao certo de onde e por que vem, achei que transpor para os Quadrinhos o grande personagem Zé do Caixão seria uma ótima pedida. Resumo da ópera: como sempre fui bom, modéstia à parte, em encontrar coisas e mover mundos e fundos para isso, logo descobri o endereço do mestre José Mojica. Seu estúdio era, na época, na Rua Silva Bueno, no bairro do Ipiranga, aqui em São Paulo. Na ocasião, eu morava no interior e lá fui eu para encontrar o misterioso homem barbudo, de capa e cartola preta e gigantesca unhas. Lá ia Laudinho, aquele desenhistazinho, entrar no estranho mundo de Zé do Caixão!!!!!!!!

Quem conhece o Mojica, logo constata a grande pessoa simples, boa praça que ele é. Comigo não foi diferente. Passamos uma tarde conversando sobre seus filmes, sua vida, seu personagem, claro. Uma conversa enriquecedora para que eu entendesse o que é Zé do Caixão. Mojica curtiu a idéia de ter seu personagem nos Quadrinhos, pois fora Cinema é um ardoroso fã da Nona Arte e já havia tido sua experiência no gênero, lançando no final dos anos 1960 a série de revistas O estranho mundo de Zé do Caixão, desenhada pelo meu ídolo então, Nico Rosso, e posteriormente pelo mestre Rodolfo Zalla. Só que nestas revistas, seu personagem só apresentava as histórias numa deliciosa e bem sacada misturada de fotos com Quadrinhos. Dica, quem não conhece procure ler que é bárbaro!!!! Mas foi enfático: comecemos do início contando a primeira história do Zé!!!!! Ou seja, Mojica sugeriu que eu adaptasse o primeiro filme À meia-noite levarei a sua alma, se não me engano, de 1964. Clássico do Cinema nacional e clássico do terror brasileiro. Tremi pela responsabilidade, mas vamos encarar o bicho de frente!!!!!

Foram quase dez meses entre adaptar e desenhar. A HQ foi publicada em 1995 pela Editora Nova Sampa com um grande estardalhaço da imprensa, noite de autógrafos no Espaço Unibanco de Cinema com direito a exibição do filme O despertar da besta, até então retido pela censura da época militar. Enfim, todo o alvoroço que uma figura mítica como Zé do Caixão merecia e merece. Muita gente veio atrás de nós, de mim e do Mojica na época para que estendêssemos as aventuras do Zé em outras HQs. O editor Carlos Mann na ocasião sugeriu uma história curta e inédita do Zé para uma coletânea de Quadrinhos nacionais que pretendia lançar em 1996. Um trabalho arrojado e um dos grandes feitos para a Nona Arte, o álbum The Brazilian Heavy Metal trazia o maior número de autores que se pode juntar numa edição, gente grande e gente miúda, estavam todos lá e é claro, O enigma de Zé do Caixão, primeiro roteiro do Mojica com seu  personagem feito diretamente para os Quadrinhos. 
           

Página da HQ O enigma do Zé do Caixão (Clique para ampliar)

Depois deste período ainda publicamos uma outra HQ curta e colorida, lançamos o primeiro número de uma mini-série com a adaptação do segundo filme do Mojica, Esta noite encarnarei em teu cadáver, que por ter sido publicada por uma editora pequena e sem força pra dar continuidade, parou o projeto. Aí minha “parceria” com o Zé, desenhando seu personagem, foi acabando. O Mojica seguiu sua vida como grande mestre do Cinema e criador deste grande personagem e eu toquei a minha, com meu trabalho e outros projetos de Quadrinhos em andamento. Neste período final ainda, foi produzido algum material que continua inédito: uma HQ curta do Zé; um roteiro feito em parceria com o Eloyr Pacheco (roteirista e editor aqui do Bigorna.net) trazendo o personagem para um universo mais moderno e atuando junto com outras personagens criadas por nós e por fim uma grande HQ de quase cem páginas com a adaptação do segundo filme, que mesmo tendo uma primeira parte da história publicada em um primeiro número de uma mini-série, continua com todo seu resto inédito.
         
Para este ano de 2007, o Mojica irá lançar seu último filme com o personagem, terminando a trilogia, com uma produção de primeira com direito a efeitos especiais e tudo mais. Será que Zé do Caixão vai deixar de ser trash??????. A Editora Via Lettera anunciou que lançaria na cola do filme esta adaptação do segundo filme. O negócio é aguardar ambos. Muita gente hoje nem sequer lembra deste personagem ou acha coisa retrô. E á claro, tem muita gente ainda que é fã dele. Mas tirando toda a galhofa que se faz às vezes em cima, o personagem Zé do Caixão é uma das grandes criações brasileiras e do Cinema mundial. Sem ufanismos desmedidos. Se tirarmos todo o apelo popular, que não é mal, visto que Zé do Caixão hoje é folclore, vamos ver a complexidade com que Mojica desenvolveu há mais de quarenta anos este homem de capa e cartola preta e longas unhas.
        
Um cara inconformado com a mesmice do local que habita, sedento em encontrar a mulher perfeita, de raciocínio lógico, sem sentimentalismos, com ideais maiores e sua crença maior é que a imortalidade reside no sangue, ou seja, na herança do pai pro filho, aí sim, segundo o Zé, está a imortalidade. Grande personagem!!!!! O Zé não é só um matador de gente que as ataca em seus pesadelos, ou um conde que quer beber sangue de suas vítimas. Ele quer uma parceira que seja como ele para que a vida perpetue. Um descrente que só acredita que se é imortal na herança do sangue! Na vida real, o que é lastimável é sabermos que Zé do Caixão não terá continuidade. Quando Mojica morrer, do Zé ficará só o mito. Afinal de contas, quem poderia continuar seu trabalho ????

A figura do Mojica, claro, gera conflito, gera susto. Gera humor. Isso é maravilhoso e ele passa por estas coisas à parte. É fabuloso. Pra fechar quero contar duas passagens (entre muitas que vi ou soube)  envolvendo o mestre... Quando fazíamos a HQ O enigma de Zé do Caixão, escrita pelo Mojica, houve uma situação curiosa, digamos assim. Na HQ Zé do Caixão passa com sua carruagem preta (!!!) dirigida pelo seu secretário, o corcunda Bruno (ou Bruninho, como prefiro chamá-lo) por um acampamento cigano, lá ele vê uma belíssima moça e encantado por ela e achando que talvez possa ter enfim encontrado sua mulher ideal, seqüestra a cigana, após seduzi-la “com seu olhar penetrante”. Rapidamente Zé é perseguido pelos outros ciganos em seus cavalos. Aí então, é neste ponto chegamos ao curioso: no roteiro original do Mojica, Bruninho para a carruagem, desce e amarra um fio de nylon de uma ponta a outra da estrada de terra, volta à carruagem e dispara em fuga, logo atrás vêm os ciganos que tem os pescoços degolados ao passarem pelo fio. Na ocasião, ao ler o roteiro, comentei com ele: “Mas Mojica, o tempo que o corcunda desce da carruagem, amarra o fio de nylon de uma árvore a outra, os ciganos irão alcançar a carruagem!!!!????”. Mojica parou e concordou. Claro!!!!!! "Mude então para o seguinte, na fuga, com os ciganos a perseguir a carruagem, Bruno tem um machado do seu lado na carruagem e o atira contra o cigano”. Ahhhh, bem melhor, né?!

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E por fim, quando criávamos a capa para a edição de À meia-noite levarei a sua alma, num final do dia, no seu estúdio na Rua Silva Bueno, eu sugeria ao Mojica que a capa deveria remeter ao cartaz original do filme, Mojica mais uma vez foi enfático: “Não, Laudo, vamos fazer algo diferente!”. Era 1995 e Mojica estava a toda com a mídia brasileira comentando sobre seu sucesso nos estados Unidos. E continuou me falando: “Veja, já provei muito da coisa aqui no Brasil e agora estou desfrutando lá nos Estados Unidos. Veja, Laudo, o Zé do Caixão gosta de carne!!!!! Faça o seguinte, desenhe o Zé numa mesa com uma faca e garfo nas mãos em um churrasco, cortando vários peitos, com olhar faminto e saboreando aquilo e... de lado, espetadas com uns garfos, umas bundas, já provadas, mas agora o apetite do Zé é com os peitos!!!!”. Uma metáfora trash. Zé do Caixão e as preferências brasileira e americana: bunda e peitos!!!

Naquele dia sai tarde do estúdio do Mojica indo encarar um busão lotado. Terror real!!! E com aquela grotesca imagem do que viria a ser a capa na cabeça. Aos poucos, no decorrer do resto do dia, fui entendendo a idéia dele e assimilando e sacando a ótima idéia. Já estava dentro do Estranho mundo do Zé do Caixão!

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