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O maravilhoso mundo dos quadrinhos filipinos (parte final)
Por Otacílio d'Assunção
06/06/2010

A gestão de Ferdinand Marcos nas Filipinas teve uma trajetória semelhante à da ditadura militar brasileira. Eleito pela primeira vez em 1966, foi se perpetuando no poder até 1986, quando foi deposto e exilado. E mais ou menos na mesma época que os brasileiros, os filipinos também tiveram seus anos de chumbo. A Lei Marcial, decretada em 1972 e em vigor até 1981, suprimiu as liberdades individuais e teve um grande impacto nos komiks. Não só em relação ao conteúdo (os roteiristas só podiam escrever histórias que se enquadrassem nos princípios da "Nova Sociedade" imposta por Marcos), como também a qualidade do papel piorou um bocado, com a proibição de se usar papel importado – e com isso fortalecer as fábricas de papel locais. Em outras palavras, por um tempo os gibis filipinos só podiam ser impressos em papel vagabundo.

O regime mais rígido também decretou o fim dos Bomba Komiks, um gênero que obteve grande popularidade no país. Eles começaram a surgir no início dos anos 60 e correspondiam um pouco aos gibis publicados aqui pela editora Edrel nos anos 1960. Os Bomba komiks não chegavam a ter nus frontais ou sexo explícito, mas os temas eram de forte apelo erótico. Eram vendidos semi-clandestinamente nas bancas. Isto é, não eram publicações ilegais, mas ficavam meio escondidos em áreas discretas das bancas. Mas era só levar uma conversa com o jornaleiro que ele mostrava o estoque. Também eram comercializados por uma legião de camelôs. Alguns artistas consagrados desenharam anonimamente quadrinhos para esse filão, que quebrava um pouco as regras do "Golden Code" (mecanismo auto-regulatório, tal como o Comics Code americano que regia o conteúdo de publicações das editorias do mainstream como a Ace de Don Ramon Roces). A Ace fora obrigada a fechar as portas em 1964 devido a uma greve dos empregados, mas como vimos no capítulo anterior (aqui) os artistas se reorganizaram fundando outras editoras e mais tarde o próprio Don Ramon ressuscitou a Ace. Em 1967 ele lançou a sua "resposta" aos Bomba Komiks lançando a publicação Pogi Magasine for men, apropriando-se do nome de um popular bomba que tinha circulado clandestinamente anos antes, por outra editora. Essa publicação se dizia mais "limpa", mas usava o mesmo esquema: fotos de mulheres seminuas, artigos sobre sexo, crimes e coisas bizarras.

Mas o "papa" dos bomba komiks era Cil Evangelista, oriundo do mercado cinematográfico, que começou a lançar revistas mostrando artistas locais peladas. Ele virou cult e chega a ser considerado um "Hugh Hefner" (famoso fundador da revista Playboy) local. Seguindo uma tendência mundial, que nos final dos anos 60 já tolerava nu frontal em publicações impressas, os bomba também seguiram por esse caminho.
Entretanto, grupos religiosos e feministas começaram a se manifestar contra esse gênero e fazer pressão. Em 1969, após um protesto de conservadores em frente à sede da prefeitura, o prefeito de Manila ordenou a apreensão de todos os bomba komiks. A perda de parte do mercado acabou levando várias editoras à falência. Finalmente, em 1972 o gênero foi abolido de vez. Mas o estrago estava feito para os komiks de modo geral. Devido à confusão gerada pelas revistas eróticas, o povo passou a confundir qualquer tipo de komik como bomba e a venda dos gibis "comportados" também foi caindo, já que muitos pais proibiram que os filhos trouxessem qualquer gibi para casa. Ler quadrinhos foi deixando de ser o passatempo nacional dos filipinos, ainda mais que com a proliferação dos aparelhos de TV em seus lares, o povo desviou sua atenção para as novelas, que começavam a bombar, e também a importação maciça de seriados norte-americanos como O Incrível Hulk, O Homem de Seis Milhões de Dólares e outros que se tornaram líderes de audiência no país. A Lei Marcial foi suspensa em 1981, quando se tentou até reviver os bomba komiks, mas a essa altura os filipinos já tinham perdido o hábito de ler quadrinhos.

Com os principais artistas do período clássico já completamente integrados ao mercado americano, os quadrinhos filipinos viram o seu declínio nos anos 80, e nos anos 90 a coisa não melhorou. Como em todo o mundo, a concorrência dos videogames e internet e a própria globalização sepultou a indústria de quadrinhos, agora não mais uma mina de ouro como no passado, mas mantida por entusiastas. Isso não impediu, entretanto, que uma nova geração de autores surgisse e se adaptasse aos novos tempos.

Hoje, os principais nomes do quadrinho filipino do passado como Mars Ravelo, Nestor Redondo e Alfredo Alcala já estão mortos. Alex Nino está vivo e ativo, alternando projetos de design de animação com novas levas de HQs. Mas ocorreu uma segunda "invasão filipina dos EUA" nos tempos atuais, à medida que artistas nascidos por volta dos anos 1960 e 70 foram se colocando no mercado. Whilce Portacio, famoso pelo trabalho feito com Justiceiro, X-Factor, X-Men e outros, também foi um dos fundadores da Image Comics. Leinil Francis Yu também foi pelo mesmo caminho, ilustrando não só séries da Marvel como da DC (Superman: Birtright é uma delas). Philip Tan já passou pelas páginas de Spawn, X-Men e Homem de Ferro. Jay Anacleto também contribuiu para a Marvel e outras editoras. Francis Manapul ficou com a Legião dos Super-Heróis.

E a indústria local? Bem, ela ainda sobrevive. Não poderosa como nos anos 50, mas algumas editoras filipinas ainda mantêm a chama acesa. Aproveitando o sucesso das inúmeras adaptações televisivas da clássica Darna de Mars Ravelo, a editora Mango Comics tem como carro-chefe Mango Jam, voltada exclusivamente para o público feminino, e ainda conta em seu catálogo com uma boa quantidade de títulos filipinos, lançou o remake em quadrinhos da heroína número 1 dos filipinos, agora com cores e roupagem mais moderna, e adaptando a origem para os parâmetros atuais das séries de TV. Da mesma forma, Lastikman, o clone do Homem de Borracha também criado por Ravelo ganhou também a sua versão anos 2000. Outra editora que está fazendo sucesso é a Nautilus Comics (com c mesmo), e promete arrebentar no ramo de graphic-novels de qualidade.

E entre os filipinos que cavaram seu lugar no mercado americano, Gerry Aguilan ocupa uma posição especial. Além de marcar presença em X-Men, Superman, Wolverine, Quarteto Fantástico e dúzias de outros, também desenvolve seu próprio trabalho autoral fora do mainstream: Elmer é um galo consciente e falante à maneira do clássico Texas de Mars Ravelo, da mesma geração de Silveria a égua falante, porém com um enfoque mais moderno. Embora a versão impressa possa e deva ser comprada, Anguilan não se importou em se autopiratear e colocou o gibi em seu próprio site.

E não poderíamos terminar sem mencionar um dos mais bizarros komiks já publicados: Zha Zha Zaturnnah, de Carlos Vergara. Tal como Darna, a personagem é uma super-heroína que adquiriu os poderes ao ingerir uma pedra alienígena caída do espaço. Só que, ao invés de uma ingênua menina, é um cabeleireiro gay de uma cidade do interior, cheio de conflitos, que ao sofrer a transformação se transforma numa voluptuosa mulher. Zsa Zsa é um transexual que deu certo e ganhou vários prêmios e foi absorvido pela imprensa "oficial" local, tendo chegado à lista dos livros mais vendidos ao ultrapassar a barreira do underground. Como os heróis mais famosos também ultrapassou a mídia das HQs: primeiro chegou aos palcos como um musical montado por uma das maiores companhias teatrais filipinas e mais tarde virou um filme de longa-metragem.

O que vimos nesta série de artigos é apenas uma ponta do gigantesco iceberg de quadrinhos filipinos. Por falta de espaço e conhecimento, muita gente importante foi deixada de fora. Fica a deixa para quem mais quiser se aprofundar pelo maravilhoso mundo dos quadrinhos filipinos.

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