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O Paulistano da Glória: informação e organização caótico-visual
Por Gazy Andraus
10/02/2006

O álbum O Paulistano da Glória (Via Lettera, 2004) reúne três autores dos quadrinhos tupiniquins que ajudaram (e ainda ajudam) a fazer a história pouco difundida das Histórias em Quadrinhos brasileiras. São eles, Xalberto, Bira Câmara e Sian. Com mais de uma década de trabalho na execução deste álbum, alguns trechos se tornaram datados, como é o caso do bairro do Bixiga em São Paulo, mostrado em plena efervescência cultural no desenrolar da narrativa, que, apesar do aparente anacronismo, enfileira outros momentos e locais ainda bem ativos, como o Museu de Arte de São Paulo. A tônica que permeia o roteiro beira o surrealismo visual, embora calcado em elementos cotidianos e num fio condutor cujos pontos principais são os pequenos subplots contidos na trama, inserindo diálogos bem humorados e onomatopéias criativas. A arte conduzida pelos três autores se amalgama num preto e branco e cinzas (também reticulados), cuja composição gráfica remete a trabalhos de Luiz Gê e principalmente a Paul Kirchner, na liberdade de representar caricatural e simbolicamente algumas cenas e seres, de acordo com o contexto narrativo. Mas a arte de O Paulistano da Glória também implica em resgate do próprio estilo de dois dos autores, Xalberto e Sian, quando do lançamento pretérito dos antológicos álbuns Íncaro - estórias daquele que voou e Contos de Lugar nenhum - este último contendo a excelente fábula metafórica em quadrinhos intitulada Esquizofrenia das agradáveis.

Rico em informações acerca de dados turísticos e culturais da cidade de São Paulo, como o Museu do Ipiranga, o já mencionado MASP e a Praça da Sé, o trabalho atual dos três autores traça um panorama social que põe em pauta manifestos neo-punks, misticismos e a vinda de uma nova modalidade de pensamento conhecida como a Era de Aquário, flertando com atores e personalidades brasileiras como Tarcísio Meira, Adoniram Barbosa e o Barão do café (uma alusão à cédula de mil cruzeiros e à sua efígie que já foi utilizada numa propaganda televisiva pela então empresa estatal de fornecimento de eletricidade, a Light), além de filosofia e religião (Nietzsche e Rajneesh), e muito mais, misturado num cadinho cultural pop e anárquico pós-moderno. Em meio a essa salada visual detalhista e extremamente rica em informação (que por isso tende à subliminaridade), o roteiro básico conta a saga de um arquiteto que, ao tentar salvar a empresa de seu pai que está na bancarrota, é "eleito" por um tal professor Zaratretas como o futuro redentor da capital paulista.

Mas a premissa, em verdade, é um pretexto para os autores "viajarem" criativamente com elementos os mais variados, recriando uma aura caótica, pós-moderna e extremamente viva, num ritmo alucinante e de video-clip, espelhando a pulsão real que é sentida ao se vivenciar o caos urbano de uma metrópole como São Paulo, com todas as suas influências culturais e históricas, não importando se intelectuais ou populares, tecendo uma estrutura anárquica, surreal e simbólica que somente a linguagem dos quadrinhos poderia trazer de forma sui generis. Tudo se demonstra num jogo visual vertiginoso, transmitindo a sensação de movimento perene aos olhos do leitor, que, ao embarcar na leitura de O Paulistano da Glória, se perceberá "atuando" como um dos personagens míticos do álbum. O trabalho também brinca ainda com as onomatopéias, transformando-as em informações auto-referentes ao surgirem como nomes de empresas de aviação (durante um vôo surreal do MASP), ou então como sons metalingüísticos aludindo a pintores famosos (como Braque e Gustav Klimt).  Ponto de destaque da obra também são as biografias dos três autores, ao final da edição, escritas de forma muito bem-humorada e criativa.

Uma advertência se faz necessária aos leitores habituais de roteiros padronizados: embora esta História em Quadrinhos de Xalbero, Bira e Sian aparente ter um enredo comum, a leitura do trabalho pressupõe um olhar menos preconceituoso e mais aberto a outros tipos de narrativas. Aqui, o que importa não é o roteiro ou o plot em si, mas sim os subplots, os meandros, os detalhes imagísticos criativos e "anárquicos" que pululam dentro dos quadrinhos, trazendo informações, principalmente visuais, não redundantes, que se incorporam a outros informes textuais da narrativa pós-moderna, enriquecendo o aparente enredo tradicional, que em realidade serve apenas como uma desculpa para uma incursão bem maior na arte e no valor intrínseco de uma verdadeira linguagem quadrinhística, como aqui se configura neste álbum.

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