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Seinfeld, niilismo, super-homens e mundos bizarros
Por Gazy Andraus*
28/10/2005

As séries televisivas (as chamadas sitcoms, ou comédias de situação) infestam principalmente os canais norte-americanos (e por tabela os nossos no Brasil). Existem de todos os tipos e para todas as vertentes, inclusive programas de conteúdo ao público homossexual e negro. Na verdade, não deixam de ser importantes, pois ajudam a formatar uma visão mais integrada da própria sociedade. Infelizmente, muitas destas séries tentam impingir aos vários telespectadores a que se destinam um humor constante e mais inteligente do que são em realidade (principalmente ao inserirem as risadas de fundo a cada diálogo, por mais tolas e sem graça que sejam as gags). Porém, neste rol incontável de séries, há uma que possui muita inteligência, humor fino e sutil, brincando inclusive com o que é "politicamente correto" e metaforizando o próprio conteúdo de seu programa: Seinfeld, que pode ser considerado como o mais inusitado e interessante de todos estes sitcoms da atualidade. Seu criador é o próprio comediante norte-americano Jerry Seinfeld, e além de seu humor ácido, sua paixão pelas Histórias em Quadrinhos, e em particular por um ícone de um gênero que tomou existência nos gibis, principalmente norte-americanos, faz com que o seriado agrade bastante também aos leitores da também chamada Nona Arte. O ícone é o Super-Homem, que na maioria dos episódios é citado de alguma forma (sem falar no imã do personagem sempre colado à geladeira de Seinfeld), e o gênero é o de super-heróis (um gênero criado nos quadrinhos e ratificado como tal por alguns pesquisadores dos quadrinhos, como o francês Thierry Groensteen).

A influência da leitura das Histórias em Quadrinhos em Seinfeld se apresenta de forma sutil na série, mas a afinidade do comediante com o herói kryptoniano é tão flagrante que o ator apareceu, em 2004, num vídeo na Internet ao lado de Super-Homem para uma campanha publicitária do American Express (assista o comercial aqui). A série Seinfeld se tornou conhecida por abordar um tema que ainda não havia sido conjeturado e que talvez deixasse o filósofo Nietzsche de cabelo em pé: o niilismo, ou seja, uma comédia diária envolvendo situações cotidianas sem um plot principal que as guiassem. A série quer se descrever como abordando nenhum tema em especial, ou então o "nada", o que não deixa de ser coerente, pois reflete muitas vezes acerca da existência humana, seus paradoxos sociais e sua imersão em objetivos muitas vezes tolos, quando vistos pela ótica do seriado (que não deixa de ser um objeto de estudo antropológico bem-humorado). Mas em verdade, há na série um plot principal, e ele é escrachado pelo próprio comediante Seinfeld quando, num dos episódios, menciona através de metalinguagem a futilidade de um programa televisivo sobre a vida amorosa de quatro personagens (Jerry Seinfeld, e outros três atores principais encarnando George Constanza, um "consciente" auto-depreciador e derrotado, Cosmo Kramer, um grandalhão desengonçado, "meio bobo", mas com tiradas geniais e idéias extremamente criativas, e Elaine Benes, uma inveterada namoradeira em busca da relação ideal, todos refletindo a natureza egoística do ser humano - Seinfeld tem, inclusive, um arqui-inimigo: o carteiro Newman - seu "Lex Luthor", um quinto personagem que aparece com menos freqüência).

Devido à influência das Histórias em Quadrinhos, pode-se sugerir que os personagens principais seriam uma versão invertida do Quarteto Fantástico, e isto não seria exagero, pois num dos melhores episódios da série, Elaine passa a conhecer três outros novos amigos, que seriam o oposto de seus companheiros da série. Na história, Seinfeld pergunta a Elaine se seus novos amigos seriam a versão do mundo Bizarro (tal qual o Super-Homem Bizarro, inversão nos quadrinhos do Super-Homem, que vive numa realidade paralela). Embora Elaine nada tenha entendido (ela não lê quadrinhos), a estranheza do episódio vai demonstrando aos poucos a semelhança física de seus novos amigos com George, Kramer e Jerry, imbuídos, porém, de personalidades opostas, pois gostam de ler, são gentis e muito solícitos (o inverso dos personagens principais, os quais de certa forma encarnam as verdadeiras facetas dos seres humanos, sendo este o ponto principal da série, já que revela filosoficamente a natureza frágil e egocêntrica de cada um de nós). O ponto culminante do episódio é quando Elaine visita o apartamento da contra-parte de Seinfeld (ou o "Seinfeld Bizarro") e se assusta ao verificar que o condomínio é idêntico ao de seu velho amigo, apresentando, porém, seus cômodos e objetos colocados simetricamente invertidos. Além de toda a graça do episódio, a alusão ao universo das Histórias em Quadrinhos e de Super-Homem se mostra como uma excelente homenagem ao universo dos personagens de papel e aos apreciadores da linguagem. A série é bem escrita e tem muitos episódios, nos quais cada um de seus quatro integrantes envolvem-se em subplots, que vão se entrecruzando e que em geral amarram-se a um plot principal "niilista", quase fatalmente convergindo-se e culminando no mesmo capítulo (mas não deixando de influenciar os subseqüentes), por vezes beirando com certa sutileza um surrealismo ou um realismo fantástico inesperado, principalmente nas presenças das imagens e cenas.

A expressão humana tornou as Histórias em Quadrinhos quase como um apêndice cultural integrado às sociedades, principalmente em países como os Estados Unidos, França e Japão. Embora menosprezados principalmente nos meios educacionais, os quadrinhos têm alguns poucos teóricos em sua defesa, que as colocam em paralelo aos veículos de narrativas ficcionais, como auxiliadores na reintegração e repartilhamento de informações e idéias, servindo de ponte à reinserção do homem à natureza da qual se distanciou há milênios. Esta seria a razão primordial de se existirem as elaborações de narrativas ficcionais espalhadas em diversos objetos, como nas Histórias em Quadrinhos e nos seriados televisivos (como neste de Seinfeld). O que pouco se percebe e se estuda, é a potencialidade informacional e influência que a imagem tem neste elaborar incessante e criativo, principalmente na organização pan-visual das histórias em quadrinhos, cuja linguagem gráfica, por ser única, pode colaborar distintamente como ponte nesta busca "inconsciente" à reunião almejada do homem a um estado anterior "paradisíaco". Tal hipótese pode estar respaldada nas pesquisas atuais da ciência cognitiva, a qual está se embasando em conclusões tiradas por tomografias computacionais, que desvendam segredos do funcionamento cerebral e suas funções hemisferiais lateralizadas, principalmente no ato fisiológico da leitura (tanto dos fonemas como das imagens). Igualmente a incursão de Seinfeld num universo pleno de humor, e carregado de "filosofias" que à primeira vista aparentam serem "baratas", não deve ser irrelevado, muito menos a influência que as Histórias em Quadrinhos, ícones da cultura dita "pop" têm tido sobre sua personalidade (e por extensão sobre sua obra televisiva). E isto é o que torna este seriado, e principalmente as Histórias em Quadrinhos, objetos de estudos e de reflexos da própria alma humana, carentes porém, ainda, de maior atenção e enfoque quanto a seu poder de informação, alcance imagístico e influência na construção da psique individual.

Seinfeld e sua "filosofia" visual passa de segunda a sexta-feira na TV paga Sony, às 9h30, 13h30 e 16h30.

* Pesquisador História em Quadrinhos, Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP e doutorando em Ciências da Comunicação da ECA-USP, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e autor de histórias em quadrinhos autorais adultas, de temática fantástico-filosófica.

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