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Por Elydio dos Santos Neto 11/07/2010
Gibis abasteciam de ética o vasto campo da fantasia infantil, sem cobrar pela lição. Não era só por exigência da família, da escola ou da religião que os meninos tinham de ser retos e bons; eles queriam ser retos e bons – como os heróis. Viviam o bem na imaginação, porque o bem era a condição do herói. A lei e a ordem eram a regra dentro da qual transitavam os heróis. Eles eram o lado certo que combatiam o lado errado. O cronista registrou um aspecto dos heróis de certo passado, não tão distante, que considero correto: parece que era mais simples, aos heróis daquele tempo, distinguir entre o certo e o errado, o bem e o mal. A realidade, porém, foi ficando cada vez mais complexa a nossos próprios olhos, a clareza se perdendo e, possivelmente, confundindo muitos leitores, na medida em que a percepção de nós mesmos e de nossa sociedade também foi ficando mais e mais complexa. Afirma o autor da crônica, continuando sua reflexão: Atualmente não sei. Parei de ler gibis, só pego um ou outro da seção nostalgia. Nos anos 70 e 80, ainda surgiram heróis interessantes, mas alguns parecem cheios de ódio, como o Wolverine, ou vítimas confusas sem noção de bem e mal, como o Hulk, ou exilados freudianos, como o belo Surfista Prateado, ou presas possíveis da vaidade, como o Homem-Aranha. Complicou-se a simplicidade do bem. Na televisão, os heróis urram, gritam, destroem, torturam, estridentes como os arquiinimigos maléficos. Não são simples, e retos, e fortes, e afinados com seus dons, como os heróis clássicos; são complexos e dramáticos, e ambíguos, como ficou o mundo.
Acredito que a leitura dos quadrinhos foram para mim verdadeira experiência e, de fato, um grande acontecimento que marcou, definitiva e inacabadamente, minha maneira de olhar para o mundo, para a vida e para mim mesmo. Muitos foram os personagens e heróis de quadrinhos que povoaram a minha infância, mas quero trazer aqui, a título de ilustração, apenas alguns. Talvez sejam aqueles que minha memória acessa mais rapidamente no “baú” do meu imaginário pessoal. Vou trazer algumas imagens destes personagens. Não estranhem se perceberem amassados, pequenos rasgos, marcas de durex ou rabiscos, pois fiz questão de escanear as imagens das revistas de meu arquivo pessoal, ou seja, dos materiais mesmos que trazem as marcas do uso de minha infância e adolescência. Os primeiros heróis que me tocaram certamente foram os santos católicos apresentados nas biografias que a EBAL (Editora Brasil-América) trazia na Série Sagrada (Fig. 1). Meus pais haviam colecionado muitos exemplares nas décadas de 1940 e 1950. Estes exemplares chegaram até minha infância nos anos de 1960 e eu passei a admirar os “heróis de virtude” que lia naqueles quadrinhos, ainda que vários fossem de existência duvidosa, coisa que somente muito mais tarde vim a saber.
Um pouco depois, vieram os heróis não religiosos, mas envolvidos numa cruzada contra o crime e contra o mal. O primeiro deles: Fantasma (Fig. 2), o espírito-que-anda, que deixava a marca da caveira para sempre nos corpos dos fora-da-lei. Era temível na cidade, como Walker ao lado de Diana, ou na selva ao lado de Guran, Capeto e do cavalo Herói. Em meu imaginário ficaram a Caverna da Caveira e os livros com as Crônicas dos Fantasmas anteriores bem como a percepção do compromisso passado de geração a geração e a fidelidade para com uma tarefa assumida. Gostava especialmente daqueles episódios em que o atual Fantasma ia à biblioteca que guardava as crônicas e rememorava, pela narrativa registrada, trechos das histórias de vida de seus antepassados. Já se encontrava ali talvez, embora não tivesse mínima consciência disto, o meu amor e interesse pelas histórias de vida, um dos meus objetos de estudo e método de trabalho na educação como pesquisador.
E com a EBAL também conheci os quadrinhos de Tarzan, Batman e o Judoka. Gostava muito do Tarzan (Fig. 4) desenhado por Joe Kubert, pois seu traço, ao mesmo tempo firme e solto, ajudavam a compor uma atmosfera de liberdade, de comunhão com os viventes na natureza, de luta pela justiça e constância na defesa de uma opção realizada: ficar na selva e defender a vida. Batman (Fig. 5) me atraiu, e até hoje gosto dele, porque sempre o vi como um personagem ao mesmo tempo sombrio e luminoso. Mesmo antes do famoso trabalho de Frank Miller com o Cavaleiro das Trevas, onde esta dualidade foi brilhantemente trabalhada. Já o Judoka (Fig. 6) – o brasileiro e não o norte-americano – me atraía porque em minha infância e adolescência fui lutador de judô (tendo chegado à faixa marron!) e, portanto, me identificava com o lutador, mas também, e talvez principalmente, porque era um herói brasileiro e os anos da década de 1970 foram anos no qual se falava muito na necessidade de reconhecimento do trabalho dos desenhistas e criadores brasileiros. Gostava de ver o revezamento dos desenhistas que trabalhavam nas histórias e foram vários os que as desenharam.
Esta rápida passagem por estes heróis me faz perceber, agora, que entrar no mundo das histórias em quadrinhos foi uma experiência que me permitiu: desenvolver o gosto por ler narrativas de aventuras num artefato cultural popular e, ainda, percorrer imagética e imaginariamente o ciclo do herói, como definido pelo estudioso de mitologia Joseph Campbell; apaixonar-me pelo desenho e, muito tempo depois, compreendê-lo como uma forma de dizer o mundo; colecionar histórias em quadrinhos e sentir o gosto inigualável de adquirir um novo exemplar com a continuidade de uma história ou com uma nova história; e, por fim, estudar as histórias em quadrinhos como uma espetacular forma de arte e comunicação. Hoje, como professor e pesquisador, sigo, a meu modo, acreditando na utopia de uma vida humana melhor. Agradeço a Marx, Ernst Bloch, Paulo Freire e Teilhard de Chardin por isso, por mais estranho que esta posição pareça àqueles que defendem certo tipo de pós-modernidade. Mas agradeço também às histórias em quadrinhos e aos heróis que vivem em meu imaginário, tomaram parte na constituição de meu ser, subjetivo e objetivo, e que me ajudam a não desanimar da idéia de que podemos ser melhor do que somos e, ainda, construir um outro mundo. Menino fiz uma experiência com os gibis, experiência que me faz dizer com Paulo Freire: “mudar é difícil, mas é possível!”. |
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