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Rastros de Ódio: a obra prima de John Ford completa 50 anos
Por Ruy Jobim Neto
17/08/2006

Uma menina perdida. Um índio comanche com uma cicatriz no rosto. Um massacre e uma busca incessante pelo Velho Oeste. Assim é o ponto de partida de um dos mais belos westerns do diretor John Ford: Rastros de Ódio (The Searchers), que completa em 2006 os seus 50 anos. Uma obra-prima indiscutível, por sinal.
 
O filme é redondo, abre como termina, vertido numa epopéia de rara beleza, tal como nos 12 passos do herói mitológico. Uma porta dá acesso ao deserto do Texas, e uma família feliz recebe o veterano da Guerra Civil, Ethan Edwards (John Wayne, em uma de suas melhores interpretações). Reunido ao irmão, à cunhada – que um dia foi por ele apaixonada – e às sobrinhas Debbie e Lucy, Ethan reconhece o calor humano que havia tempos não vivenciava. No entanto, é na figura de um sobrinho que ele não reconhece como seu parente, Martin Pawley (Jeffrey Hunter), que Ethan vai encontrar exatamente o seu contraponto: Martin tem sangue em parte comanche, em parte cara pálida, ao passo que Ethan não gosta de índios. E adiante vai encontrar ainda mais motivos para essa repulsa. É, no entanto, na ocasião do ataque dos índios comandados pelo Chefe Scar (Cicatriz) que haverá o massacre dos familiares de Ethan. Assim, é reunido o grupo dos Texas Rangers, comandados pelo valente reverendo Clayton (Ward Bond), ao qual Ethan e Martin se juntam. Objetivo: encontrar as sobrinhas Lucy e Debbie, únicas prováveis sobreviventes do massacre. E assim, como um Ulisses moderno, Ethan segue seis longos anos de busca incessante, seguindo por locais os mais diversos, típicos em filmes de John Ford, a exemplo do majestoso Monument Valley.
 
É nesse momento em que se sente a primazia da gramática fordiana. O brilhante diretor, em total controle do seu storytelling, transforma uma história de vingança num épico de dois homens. Todos os personagens do filme, desde o pobre coitado Mose Harper, sentado numa cadeira de balanço com a qual passa metade da vida sonhando, o reverendo, os índios, o casal que mora com a filha Laurie no meio do caminho, os amores e as cartas ao longo de muitos anos, todos esses elementos se costuram com extrema beleza e candura. A trilha sonora composta pelo grande Max Steiner traduz o filme com bravura nos momentos de luta, com humor nas cenas de Martin e sua esposa índia e da namorada Laurie, e com ternura quando Ethan toma a sobrinha Debbie nos braços e pronucia "Debbie, vamos pra casa", num dos mais cândidos e tocantes momentos dessa obra. E a porta se fecha, afinal, deixando o deserto lá fora, hostil e inóspito.
 
Tudo funciona em Rastros de Ódio para que o espectador se sinta honrado em terminar de ver seus 119 minutos e dizer, ao final, que acabou de assistir a um dos maiores filmes do diretor de Como Era Verde o Meu Vale, Paixão dos FortesA Mocidade de Lincoln, Depois do VendavalNo Tempo das Diligências e Mister Roberts, entre tantos outros. John Ford começou no cinema mudo, em 1917, dirigindo sem parar até 1966, quando rodou Sete Mulheres, com Eddie Albert e Anne Bancroft. A experiência de encenador salta às vistas nesta obra-prima do faroeste, ainda mais que estaria muito bem assessorado por técnicos de primeira, um compositor de primeira, um roteiro de primeira e os dois grandes atores recorrentes em sua filmografia, John Wayne e Ward Bond. Tanto é que em Rio Bravo (Onde Começa o Inferno), da trilogia de westerns de Howard Hawks, lá estão novamente os dois atores reunidos.
 
Mas as curiosidades de equipe e elenco é que tornam Rastros de Ódio mais uma das obras únicas de John Ford. O filme é produzido por Patrick Ford (filho do diretor) e por Merian C. Cooper (lendário produtor de King Kong, o original de 1933), tem direção de fotografia de Winton H. Hoch e roteiro de Frank Nugent (baseado em obra de Alan Le May). Entre as curiosidades do elenco, encontram-se as duas irmãs Lana e Natalie Wood. Se Natalie (que interpreta Debbie mais velha) dispensa apresentações, a irmã Lana (que faz a Debbie menina) chegou a trabalhar com Sean Connery num dos filmes de James Bond, Os Diamantes são eternos, no papel da deliciosa bondgirl com o sugestivo nome de Plenty, devido aos espetaculares seios. Jeffrey Hunter (que fez Rei dos Reis) e Vera Miles (de Psicose) formam o divertido e inesquecível casal que briga e desbriga, Martin e Laurie, uma dupla de apaixonados que passa boa parte do filme aos trancos e barrancos. O filho de John Wayne, Pat, contracena com o pai, no papel de um jovem tenente da Cavalaria Montada. E Mae Marsh (que trabalhou com Lilian Gish no filme de 1915 do lendário diretor David Wark Griffith, O Nascimento de uma Nação) interpreta a mulher no Forte da Cavalaria, quando Ethan e Pawley procuram moças perdidas no rigoroso inverno americano.
 
Fora os nomes que compuseram Rastros de Ódio, o filme tem a inquestionável marca de John Ford. O cineasta mostra uma América que poderia ter sido tenra e cruel ao mesmo tempo, uma terra de homens bravos e determinados, e que tentam se agarrar a qualquer traço de humanidade depois da gravíssima Guerra Civil Americana (onde o Norte industrial venceu o Sul escravocrata e agrário) que determinou os rumos dos Estados Unidos para sempre. Um filme tese, com certeza. E nessa aventura, o diretor avalia o preconceito do homem branco para com o indígena, ao mesmo tempo em que faz uma radiografia da ação humana sobre o ambiente, seja matando os búfalos no inverno, seja trabalhando a dimensão heróica de um tipo como o complexo Ethan Edwards. Vale a pena rever o filme, vale a pena se emocionar de novo. (N. do E.: o DVD de Rastros de Ódio está disponível para venda aqui).

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