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Tralha: Marcatti, Mutarelli & Cia.
Por José Salles
16/08/2005

O sucesso editorial da antológica revista/gibi Chiclete com Banana (sucesso sem precedentes no mercado editorial brasileiro, no que se refere a publicações underground), a partir de meados da década de 80 do século passado, foi também responsável por uma série de outras revistas/gibis que buscavam saciar o desejo por HQs que vinha se formando naquela nova geração de leitores. Dentre as mais conhecidas publicações que vieram no rastro da Chiclete, algumas chegaram a atingir um expressivo número de tiragem & vendas, caso de Piratas do Tietê, Geraldão e Níquel Náusea, títulos de longa duração (para os padrões brazucas).

Algumas outras, mesmo não repetindo o sucesso comercial dos gibis supra-citados, e por isso tendo vida curta ou curtíssima nas bancas, mostraram em suas poucas páginas algumas das mais memoráveis HQs "udigrúdis", no traço de autores hoje considerados (justamente) como gênios criadores dos quadrinhos. É o caso da revista Tralha, lançada pela Editora Vidente no segundo semestre de 1989 e que, em apenas dois números de vida, mostrou aos leitores o que de melhor vinha sendo feito em matéria de quadrinhos brasileiros. Talvez não seja exagero dizer algo sobre alguns comentários que se ouviam na ocasião do lançamento desta revista, que a Tralha era na verdade uma publicação com os "renegados" da Chiclete com Banana, em especial os quadrinhistas Marcatti e Lourenço Mutarelli. Ambos haviam publicado HQs nas páginas da Chiclete e, graças a isso, começavam a ganhar reconhecimento nacional, mas pelo que consta nem um nem outro morrem de saudades do tempo em que trabalhavam neste gibi.

Marcatti deixou a redação da Chiclete devido a seu indômito espírito de artista independente, que vem demonstrando desde os tempos de suas publicações em mimeógrafo e que provavelmente bateu de frente com algumas decisões editoriais da equipe de Toninho Mendes e Angeli; já com Lourenço Mutarelli a coisa foi mais embaixo: ainda um novato quando teve algumas de suas HQs publicadas na Chiclete com Banana, Mutarelli não era levado muito a sério pelos cobrões da Circo Editorial, fazendo com que fosse procurar outras plagas - e vejam como o mundo dá voltas: alguns poucos anos depois, quando Lourenço Mutarelli já publicara alguns de seus impressionantes álbuns de quadrinhos (Transubistanciação, Desgraçados, Eu te Amo Lucimar) e se tornara artista exclusivo da livraria Devir, adivinhem quem esta editora paulistana contratou para enriquecer seus quadros? Exatamente Angeli e Laerte, as cabeças pensantes da Chiclete com Banana, que desdenhavam de Mutarelli nos idos dos anos da década de 1980...

Logo na capa do primeiro número de Tralha (34 páginas, outubro de 1989) somos brindados com um quadro de Marcatti que merece figurar entre as maiores obras-de-arte dos quadrinhos escatológicos - digo, merece figurar entre as grandes obras-de-arte dos quadrinhos, ponto! E na capa já se anunciam alguns dos outros colaboradores, pessoas que, na época, vinham já há alguns anos trilhando os caminhos dos quadrinhos e da literatura off-mídia. Coube também a Marcatti a ilustração do editorial sem palavras (onde homenageia seu colega Lourenço Mutarelli) e da primeira historinha, Não convide Aristides para o jantar. HQ de cunho altamente escatológico, mostrando um solitário senhor de meia idade cuja única companhia é um peixinho de aquário, que se alimenta com larvas extraídas dos olhos de próprio dono (Aristides é o nome do peixe, e não do homem). O velho segue sua vidinha inútil, até que sua neta aparece cheia de amor incestuoso pra dar, fascinada com o olho de vidro do avô (que ele sempre retirava para poder alimentar Aristides). Logo o peixe não só é esquecido, mas servido como sashimi no jantar.

Segue HQ de uma página com um conhecido personagem de Lourenço Mutarelli, o Cãozinho Sem Pernas - que é bem isso mesmo, um cão de patinhas amputadas. Outra HQ de página única nos aguarda: Diga não às drogas, no traço vívido e ágil de Bira, mostrando aos leitores algumas drogas muito piores do que as ilícitas. Na seqüência temos HQ de Mário chamada Vingança Total contra a Humanidade, onde toma o partido dos bichinhos, imaginando o que aconteceria se eles fossem tão racionais quanto os humanos. Historinha engraçadinha, militância bobinha. Não admira que Mário tenha desenhado durante tanto tempo para sindicatos pelegos. Em Festa temos outra vez Mutarelli, desta vez zoando alguns conhecidos personagens dos quadrinhos, como Pato Donald, Cebolinha e Snoopy. Esta é a página que precede A Evolução da Humanidade, uma HQ feita em parceria por Mário & Bira, mostrando que por melhor e mais avançadas que sejam as novas tecnologias, o ser humano ainda é quase a mesma besta ridícula que era quando se assemelhava aos símios (epa! Eu disse "assemelhava"? Acho que errei no tempo verbal).

Os Herdeiros de Demerval é outra história de Marcatti presente no primeiro número de Tralha (e que já havia aparecido no número 9 de Lodo, fanzine editado pouco tempo antes pelo próprio Marcatti). Lesmas que saem de cadáver putrefato, fazem amor com a viúva, morto-vivo que se contorce quando lhe jogam sal sobre o corpo... isto é Marcatti, yeah! Persona demonstra mais uma vez o humor negro claustrofóbico de Mutarelli, enquanto Bira numa HQ chamada Entranhas se aproveita da vida de dois vermes para falar sobre repressão educacional.

Marcatti e Mutarelli fecham a edição, o primeiro em As Aventuras de Martins se aproveita para fazer um gracejo incestuoso, enquanto o segundo encerra a revista com uma HQ chamada O Inocente, onde revela uma das mais terríveis formas de tortura conhecidas - se vocês acham que uma gota d'água é inofensiva, experimentem ficar recebendo um pingo na cabeça durante horas sem fim. Qualquer um que passar por um suplício destes concordará integralmente com o dito popular que diz "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". E é este notável autor de obras hoje reconhecidas no Brasil e na Europa (O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto) quem assina também a HQ colorida da contracapa, mostrando La Dolce Vita de seres urbanos degenerados.

Por ter sido elaborada, projetada, desenhada e lançada quase que exclusivamente por fanzineiros ou ex-fanzineiros, era mais ou menos esperado que Tralha, além das HQs, publicasse também alguns textos. Neste primeiro número, além da sessão de cartas (provavelmente enviadas ainda para os gibis da Editora Pro-C, de Marcatti), temos um artigo de Glauco Mattoso falando sobre flatulências mal-cheirosas, e outro de Gualberto apresentando aos leitores o histórico do quadrinhista Lu Gomes (t.c.c. UL), muito ativo durante os anos da década de 1970 mas que acabou abandonando os quadrinhos para sobreviver (foi escrever sobre música, e outras atividades mais rentáveis & reconhecidas). Se no primeiro número de Tralha a capa vinha assinada por Marcatti, e a contracapa (entenda-se a última capa da revista) por Mutarelli, as posições se inverteram no número 2 (lançada nas bancas em dezembro de 1989) - e tanto capa quanto contracapa revelam-se igualmente antológicas, merecendo figurar em qualquer seleção de melhores de todos os tempos.

Um tema em especial perpassa por todo o segundo número do gibi: a família, esta sagrada instituição da sociedade judaico-cristã, é implacavelmente destruída nas páginas de Tralha nº 2. Abrem-se as cortinas e temos de cara uma HQ escrita e ilustrada por Lourenço Mutarelli, uma visão assombrosa da Santa Ceia, onde o autor também se aproveita para homenagear (ou esculhambar) alguns outros conhecidos personagens dos quadrinhos - pode-se reconhecer, no traço absurdamente transgressor, Betty Boop, Popeye, Monstro de Frankenstein, Cascão, Mônica, Zé do Boné, Glaucomix. A HQ seguinte, assinada e desenhada por Mário, chamada Família Sagrada, usa do deboche satírico para avacalhar com um almoço dominical, onde parentes e vizinhos se digladiam ferozmente e só se acalmam quando está na iminência de começar um programa televisivo de um conhecido apresentador domingueiro (sabe de quem se trata, Lombardi?). Um banho de sangue que causa gargalhadas e não asco.
 
Starway to Success, parafraseando a manjadíssima música do Led Zeppelin, é pretexto para Bira mostrar que os caminhos do genuíno rock and roll não coadunam com a ganância comercial do mundão pop. Segue uma HQ de Paulo Monteiro chamada O Orgone, onde a sisudez moral de um respeitado general não passa de neuroses paranóicas oriundas de paixões homossexuais reprimidas. Tesouro no segundo número de Tralha: uma parte das aventuras do pedólatra (hoje podólatra) Glaucomix, o alter-ego de Glauco Mattoso que ganhou vida no traço irrepreensível de Marcatti. Esta O Dia da Caça, assim como outras idealizadas pela dupla Mattoso/Marcatti com este personagem, foram publicadas em pílulas por algumas revistas "udigrúdis", como Lodo, Chiclete com Banana e Mega Zine, antes de serem reunidas no álbum de luxo independente que hoje é um marco da HQ nacional, As Aventuras de Glaucomix, o Pedólatra.

Outra HQ de Mutarelli, de página única, mostrando com seu peculiar (e sinistro) bom-humor, toda solidão e angústia dos leitores de gibis: A verdadeira história de Sólon. Reaparece também em Tralha nº 2 o seu Cãozinho sem Pernas. Em Mulher Alternativa, o incrível Bira aproveita para espinafrar os modismos; já a HQ "Roxana" (assinada por Tadeu Sztejn, mas olhando bem - e nem tão bem assim - arrisco a dizer que seja um pseudônimo de Lourenço Mutarelli), conta uma história onde os personagens só podem ser vistos da cintura para baixo. E é Marcatti quem encerra a fulminante porém inesquecível passagem de Tralha por nossas bancas, com  mais podreira, abandono conjugal, zoofilia e incesto, com irresistível sarcasmo debochado.

 Veja também:
Creme de Milho com Bacon, de Marcatti, em 3-D

Bang-bang Brasiliano

Saudades da Chiclete com Banana

Artigo: Marcatti, o "pai" do udigrudi nacional

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