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Histórias em quadrinhos: comunicação, entretenimento e educação
Por Elydio dos Santos Neto
04/05/2010

Embora muito do preconceito em relação às histórias em quadrinhos já tenha sido superado não é raro encontrarmos, ainda, pais e educadores que têm uma visão bastante negativa das mesmas, no mínimo entendendo-as como um passatempo menor, pobre e como“coisa de criança. Eu, que hoje tenho 50 anos, ouvi muitos adultos e professores, na minha infância e adolescência, falar contra as histórias em quadrinhos com discursos do tipo: ”histórias em quadrinhos emburrecem, histórias em quadrinhos provocam lerdeza mental,“histórias em quadrinhos não estimulam a imaginação porque já trazem as imagens prontas, histórias em quadrinhos é para quem tem preguiça mental”. Felizmente em minha casa não havia esse preconceito relativamente aos quadrinhos e meus pais, que gostavam muito de ler, liam indiscriminadamente romances, revistas de notícias, revistas de cinema, jornais e também histórias em quadrinhos. Em casa havia muitas histórias em quadrinhos que eles próprios compraram e colecionaram. Da Editora Brasil-América (EBAL) eles tinham muitos números das coleções Série Sagrada, Edição Maravilhosa, Epopéia, Grandes Figuras em Quadrinhos, Ciência em Quadrinhos. Meu pai apreciava muito as revistas com histórias de Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy e Fantasma. Minha mãe se divertia muito com as tiras do Reizinho e do Pinduca que saíam publicadas nos jornais.

Claro que neste ambiente, desde criança, aprendi a apreciar e a gostar das histórias em quadrinhos. Li quase tudo da Série Sagrada e me apaixonei pelos quadrinhos de Flash Gordon, Mandrake e Fantasma. Sem dúvida havia uma influência do meu pai, mas logo em seguida fui compondo a minha própria galeria de heróis e de histórias: Zorro e Tonto, Roy Rogers, Tarzan, Korak, Akim, Batman, Shazam, Homem-Aranha, Gunsmoke, Tomahawk, Sargento Rock, As Agentes Trigêmeas, Cinco por Infinitus, Recruta Zero, Peanuts, Fradim e Graúna, O Pato, Rango, Mafalda, e o Judoka, em sua versão brasileira. Vibrei quando a Rio Gráfica Editora, no início da década de 1970, lançou o Gibi Semanal: colecionei os quarenta números publicados, que guardo comigo até hoje, semana a semana. Com o Gibi descobri uma série de personagens, os do passado e aqueles contemporâneos de minha adolescência: Brucutu; Agente Secreto X-9; Tereré; Príncipe Valente; Spirit; Terry e os Piratas; Cisco Kid; Dico, o Artilheiro e muitos outros. Ora, além daqueles outros aspectos que vinham de minhas outras experiências pessoais e da formação escolar que tive, meu imaginário foi sendo povoado com esta rica imagética dos quadrinhos. Não emburreci, não abandonei as demais leituras e nem o trabalho com a imaginação. Graduei-me em Filosofia e Pedagogia, fiz mestrado em Ciências da Religião e doutorei-me em Educação. Segui carreira acadêmica. Estudo, leciono, pesquiso e escrevo. Sinto-me feliz por ter me alimentado, e ainda me alimentar, da imagética do mundo das histórias em quadrinhos e, nos últimos anos, resolvi orientar parte da minha produção acadêmica para pesquisar as histórias em quadrinhos. De forma bem ampla posso dizer que as questões que me provocam a pesquisar os quadrinhos são as seguintes: qual o seu sentido e o significado entre as produções culturais humanas e que lugar pode ocupar no mundo da educação em geral e da educação escolar em especial?

Estas questões me interessam porque há muito percebi a riqueza deste artefato cultural chamado histórias em quadrinhos e vejo que elas expressam bem mais do que um olhar superficial pode supor. Desde os primórdios de nossa história humana, individual e coletiva, uma ferida nos acompanha: percebemo-nos existentes e conscientes sobre o planeta sem, contudo, termos clareza indubitável sobre nossa origem e nosso fim e, acrescente-se, necessitando lutar pela nossa sobrevivência. Desde muito, portanto, algumas perguntas recorrentes nos acompanham: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido de nossas vidas? Por que viver? Por que morrer? A consciência nos trouxe não apenas o desafio de enfrentar estas e outras questões, mas também, e aos poucos, a ciência de que diferentes seres humanos, desde suas subjetividades, elaboram diferentes respostas para estas perguntas e, portanto, necessitamos nos comunicar com o outro que se apresenta diante de mim. O que eu penso sobre a vida? O que você pensa sobre a vida? O que podemos compartilhar para vivermos melhor? Estas e outras perguntas são uma das bases de nossa necessidade de comunicação e partilha. Também por isso criamos histórias e contamos histórias. Deste ponto, e fazendo um salto, podemos compreender que também as histórias em quadrinhos são uma criação cultural que nos permite lidar com nossa ferida das origens. Por elas revisitamos as tantas facetas complexas de nossa condição humana e, com a ajuda da imaginação, enfrentamos problemas, ameaças e desafios que a vida nos apresenta. Quem cria, quem desenha e quem lê, todos, estão sempre nas mesmas condições: seres humanos fazendo-se na vida cotidiana, empenhando-se por realizar uma existência, lidando com a ferida que não nos deixa sossegar de forma absoluta. As histórias em quadrinhos são, assim, uma forma de comunicação e expressão de nossa condição humana, mesmo quando se destinam a fazer rir ou a simplesmente fazer passar o tempo.

Reconheço assim que os quadrinhos, dependendo do gênero desenvolvido, servem também, e para alguns principalmente, ao entretenimento. Nós, seres humanos, precisamos nos distrair, nos divertir, “esquecer”, por pouco que seja, o cotidiano muitas vezes opressivo. E os quadrinhos se prestam também para isso, tanto para os adultos como para as crianças. Atentemo-nos, contudo, ao fato de que, mesmo quando no desligamento do entretenimento, nosso inconsciente continua a trabalhar e nós prosseguimos, internamente, a elaborar nossos modos problemáticos de ser e de estar no mundo. Depois será necessário trazer estes aspectos ao consciente para serem trabalhados e assumidos claramente, mas, de fato, nunca estamos completamente “desligados”, da mesma forma como uma criança está elaborando conhecimentos muito importantes no “desligamento” de sua brincadeira aparentemente inútil e ingênua. As histórias em quadrinhos são, pois, a meu ver uma grande brincadeira, no sentido mais positivo e criativo que esta expressão pode assumir.

Ora, se as histórias em quadrinhos são expressão da condição humana, então, com certeza, podem prestar-se ao trabalho educativo escolar e não-escolar. Claro que não poderá ser um trabalho no qual apenas disponibiliza-se as revistas nas mãos dos educandos e pronto. Este é o tipo de leitura para se fazer em casa, do jeito que cada um gosta e sabe fazer. Mas, na escola, há outra intencionalidade a ser trabalhada e tal passa pelo projeto pedagógico da escola ou da instituição que realiza o trabalho educativo. Além de passar pelo projeto coletivo da escola passa também pela experiência de leitura do/a professor/a que trabalha com os/as alunos/as. E não só pela experiência, mas também pela sua criatividade pedagógica que, por sua vez, exige planejamento, conhecimento de diferentes possibilidades e muita experimentação. Se tais cuidados forem tomados os quadrinhos poderão ser trabalhados, com grande proveito educativo, da educação infantil ao ensino superior, pois carregam consigo maneiras diferentes e interessantes de conceber o ser humano e sua condição, tema de fundamental importância a ser discutido em todos os níveis da educação formal e não-formal.

Pessoalmente estou convencido, pela minha experiência própria e pelo quanto tenho visto nas pesquisas e nas práticas pedagógicas, que as histórias em quadrinhos são uma inteligente e criativa forma de arte e linguagem que, por favorecer simultaneamente a leitura da imagem e a leitura da palavra, pode ajudar a formar seres humanos mais inteiros na própria condição e assim, talvez, ajudá-los a participar da construção de outro mundo, diferente, para melhor, deste que temos conseguido fazer. Utopia? Pode ser. Não tenho problemas com a utopia, aliás, compreendo-a como aquilo que ainda não existe, mas que me anima a lutar para que se torne realidade. Sigamos com os quadrinhos... Há esperança!

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