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CCLA, onde baixou o Diabo Coxo! (ou o dia em que o Diabo falou comigo)
Por Lia Abreu Falcão*
05/02/2007

Saí de Pernambuco, noite alta, viajando no escuro, para conhecer um personagem da história do Quadrinho Nacional que, há muito, me instigava o juízo - o Diabo Coxo! Disseram, com quase certeza, que ele fora visto lá pras bandas de Campinas, terra do meu amigo Bira Dantas e então, ousei conferir. E fui.

Chegança demorada, rodoviária entupida de gente de todo canto do mundo e de fala atropelada de xis. Medi uns cem metros de vontade e fui ao encalço do Dito Cujo. Quando dei fé, estava na encruzilhada onde disseram que o Tal baixou: cruzamento da Av. Francisco Glicério e a Bernardino de Campos, no centrão da cidade de Campinas. Sim senhor. Mal pegara a estrada e já me vi foi no meio do redemoinho do centro de Campinas, arrodeado de gente de toda qualidade: branca, preta, amarela, encarnada, azulada de fome, esverdeada de pressa, uma confusão dos diabos! Fon-fons de carro, latidos de cachorro, meu padim Ciço me perdoe, minha missão vou cumprir: tenho fé de conhecer esse Diabo é hoje!

E me pego perguntando a um cabra com cara de gente ou mais ou menos: - Moço, o senhor sabe onde fica o CCLA? O homem me olhou com cara de poucas perguntas e muitas respostas e me mostrou o prédio na esquina. - Muito agradecida, disse, ressabiada. Quando atravesso a rua, noto que ele me segue: usa casaca, chapéu e guarda-chuva. Qual o quê? É o Tinhoso ou o Secretário? Nem pensar! Vou assuntar já o que ele ainda quer: - O que é que há? Desentale logo! Ele, meio sorrindo, me cumprimenta retirando o chapéu e diz que é meu cicerone naquele dia, a mando do cartunista e ilustrador Bira Dantas, com quem eu não teria a honra de me encontrar, devido a compromissos no mesmo horário.

Ora, amiga do Bira há tempo, conheço a peça e sei que ele é bem capaz de estar na Tailândia recebendo um prêmio de Melhor Cartunista daquelas bandas também. Resignada, aceito a companhia do tal homenzinho, que até simpático parece: - Prazer, meu nome é Lia, mas pode chamar de Lilly que eu atendo também. O seu nome é? Uma sirene de ambulância passa cortando todo o som audível que seria o nome do meu acompanhante. Não ouço, mas não me preocupo - amigo do Bira é meu amigo também. E vamos passeando por Campinas.

- Então, dona Lia, vamos conhecer o Clube de Leitura de Campinas, o CCLA?
- Oxente, só se fora agora! E quero que o senhor me dê também o paradeiro desse tal de Diabo Coxo que ele é o motivo dessa minha visitação, num sabe?

Ele ensaia um sorriso e promete que me atenderá mais tarde:
- Mas dona Lia, a senhora veio de tão longe só para conhecer o Diabo Coxo?
- Vim sim, pois o Bira disse que ele é mais tinhoso que mil e um cartunistas juntos e que é muito sabido, sorumbático e espetaculoso!

O homem ri das minhas infantilices, mas disfarça com pudor de cavalheiro, conduzindo a nossa prosa como bem quer e entende. Começa falando sobre o edifício da esquina da Avenida Francisco Glicério com Bernardino Campos, onde estamos. Ensina que ali fica a sede do CCLA, que é uma entidade cultural particular e sem fins lucrativos, fundada em 31 de outubro de 1901, por cientistas, artistas e intelectuais que decidiram criar uma instituição em que se pudessem reunir as pessoas para estudo e atividades científica e artísticas. Como é sabido esse moço, ele até se parece com Bira, o danado! Entramos na Biblioteca do CCLA e fico deslumbrada com o acervo cultural: mexo em tudo que posso, sem tirar os olhos do distinto do guarda-chuva. Subimos alguns degraus e nos deparamos com o Museu Carlos Gomes, que também funciona no CCLA, repleto das peças musicais mais consagradas desse grande Maestro e compositor brasileiro, autor da famosa ópera O Guarani. Tudo isso no centrão de Campinas, ora vejam só!

Meu cicerone cultural me diz que hoje é o Dia do Quadrinho Nacional, instituído há 22 anos pela Associação de Quadrinhistas e Cartunistas do Estado SP (AQC) para lembrar que nesse dia, em 1869, foi publicada a primeira História em Quadrinhos brasileira, nas páginas do jornal Vida Fluminense, com o personagem fixo Nhô-Quim, criado por Angelo Agostini. A folhinha na mesa da bibliotecária confirma: é 30 de janeiro! Continuamos a visita e meu acompanhante me esclarece que a AQC também criou o Troféu Angelo Agostini para premiar os melhores na categoria. Feita a apuração, os vitoriosos serão homenageados, com direito a exposição e troféu. Existem seis categorias no prêmio! É um marco para a história do Quadrinho Nacional.

[Engraçado, viajei um país inteiro atrás do Diabo Coxo e me aqui estou me deslubrando com a história da minha outra paixão - a história dos Quadrinhos! Sempre tive um amor roxo por tudo que se escreve e lê, até bula de remédio pra giárdia, mas não nego que a outra paixão é a Nona Arte, tudo que se desenha e pinta para contar uma história me fascina e me comove. A arte de discursar através do desenho é, para mim, uma das mais requintadas e mais desumanas. Explico: não creio que qualquer cartunista seja de fato humano - eles não são desse mundo, juro! Aliás, tive em casa a prova viva: meu irmão caçula - Miguel - definitivamente não existe! É autodidata, desenhista, pintor, ensaísta, cronista, cantor, diagramador e vive rindo! Não pode ser desse mundo, pode? O Bira, não é de todo diverso: faz tudo isso que o Miguel faz e ainda toca um blues arretado na gaitinha de boca! Laílson? É outro, de um outro planeta: faz tudo isso que o Bira faz e ainda toca guitarra numa banda de jazz! Tsc, tsc. Tenho o maior carinho por todos, mas, não confio no juízo de nenhum!]
   
- Mas como é mesmo o nome do senhor? Perguntei, uma última vez, tentando disfarçar a curiosidade.
- Ah, dona Lia, falta a senhora visitar a sessão sobre História do Quadrinho Nacional, um primor! Lá, um livro sobre o tal Diabo Coxo, onde a senhora poderá tirar qualquer dúvida e terá a resposta que precisa.

Caminhamos até outra estante e lá, o livro da Editora do Senado Federal, intitulado O Diabo Coxo estava à mostra. Linda edição, bem diagramada, papel de excelente qualidade, dava gosto folhear. Deslumbrada, vou engolindo com os olhos todas as gravuras e histórias sobre o autor do personagem e, à página tal, me deparo com uma fotografia do Angelo Agostini que, para meu espanto, é surpreendentemente igual à figura do meu cicerone cultural!

- Sou Angelo Agostini, dona Lia, um seu criado. Sou desenhista, ilustrador, caricaturista e pai do Nhô-Quim e do Zé Caipora que estão logo ali, sentados, olhando para gente. Quisemos todos vir até aqui, para fazer uma delicadeza com nosso amigo Bira Dantas, que não poderia estar presente e nos enviou para receber a senhora! Bira muito tem feito para resgatar o espaço que merece o nosso Quadrinho Nacional. Dito isso, meu interlocutor se despediu, dizendo que tinha outra amante de artes para ciceronear e puff, desapareceu tão depressa quanto veio. Meu Deus! Conhecer não só o Diabo Coxo, mas o próprio Pai do Diabo com toda pompa e circunstância! Ele, realmente provou que via além das paredes e enxergava além das gentes, pois criou uma legião de seguidores - quadrinhistas, ilustradores e cartunistas - que continuaram sua obra de fazer a história do nosso país e mudar seus rumos através da magia do traço e da pureza dos seus riscos!

Sou uma felizarda e considero-me honrada em ter tido a oportunidade de estudar de pertinho um pouco sobre esse ilustríssimo artista ítalo-brasileiro, o mais brasileiro dos brasileiros, Angelo Agostini, hoje, 30 de janeiro de 2007: o dia em que, definitivamente, entrei - pelas mãos do Diabo - para a história do Quadrinho Nacional!

SE NON È VERO È BEN TROVATO!!!

(ilustração de Bira Dantas)

*Lia Abreu Falcão, uma matutinha arretada, das brenhas de Timbaúba, Pernambuco. Nasceu a bordo de um avião e continua voando nas letras e nos traços do irmão Miguel e dos amigos Laílson, Samuca, Clériston, Bira, Heringer, Paffaro, Sampaio, Mestre Zira, Dálcio, Airom e Verde. Gosta de escrever, causar rebuliço e cantar um blues da gota como uma Janis Joplin do agreste. Segundo sua avó Luzia, a Lia é quieta - a quietura é que dura pouco!

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