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Uma Fortaleza de Preconceito e Solidão
Por Gonçalo Junior
30/07/2007

Um romance que não deve passar em branco para os apaixonados por Histórias em Quadrinhos no Brasil é A Fortaleza da Solidão, do escritor norte-americano Jonathan Lethem, que a editora Companhia das Letras lançou em maio deste ano. Não me lembro de ter lido nada a respeito nos sites especializados em gibis – resenhas, comentários ou divulgação –, mesmo com a relevância que, acredito, este volume merece no meio, uma vez que os comics são parte indissociável e fundamental em toda a sua estrutura narrativa.

É uma obra para ser devorada como informação histórica ou de puro entretenimento – encare sem medo suas mais de 600 páginas porque a leitura é fluente e instigante. Também deve vista por um aspecto recorrente nesta coluna: a questão do preconceito contra as Histórias em Quadrinhos. O livro de Lethem dá o merecido destaque aos comics pela sua importância no universo da cultura pop nos últimos quarenta anos, em especial nos Estados Unidos. Não apenas isso. A reputação que o romance conquistou no mercado americano assim que foi lançado, com resenhas das mais entusiasmadas nos principais jornais e revistas, leva o tema à discussão em meios onde não tem o devido reconhecimento. Nesse sentido, o livro se coloca ao lado de uma outra narrativa fundamental, As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay, de Michael Chabon, publicado no Brasil pela Record, em 2002.

Adaptações do Cinema para os Quadrinhos e vice-versa têm sido uma constante na história desses dois meios. É comum ainda ver romances levados para os gibis – com a mesma reciprocidade. Usar a História dos Quadrinhos, sua linguagem ou seus personagens para, a partir daí, construir uma novela, um romance ou uma (auto) biografia é mais raro. Citaria dois brasileiros que tentaram isso já faz algum tempo: Hermínio Borba Filho, que publicou Agá Romance (Civilização Brasileira, 1974); e Alberto Maduar, autor de Uma história em Quadrinhos (Massao Ohno, 1981). Lá de fora, merecem destaque Umberto Eco (A misteriosa chama da Rainha Loana, Record, 2005), Susana Fortes (Meu querido Corto Maltese, Teorema, 1998) e Jules Pfeiffer (O homem no teto, Companhia das Letras, 1995), entre outros.

A trama de Lethem é focada na amizade entre Dylan Ebdus e Mingus Rude, um garoto branco e um negro, respectivamente. As referências dos nomes dos dois são óbvias. O primeiro é uma homenagem a Bob Dylan; Mingus surgiu de um tributo a Charles Mingus – ícones da música americana do século XX. Ambos têm pais artistas – um é pintor e um obscuro capista de livros e o outro, um compositor e cantor de soul music – e foram abandonados pelas esposas quando os filhos ainda eram muito pequenos. Dylan não gosta de briga e teme as investidas dos garotos negros do bairro que o perseguem sem trégua. Sua vida é puro terror. Receia até a ida e a volta para a escola e morre de medo de até a banca de jornal comprar revistas em Quadrinhos. Na sua escola, ele é um dos quatro brancos – os outros três são garotas, com as quais não tem nenhum contato. Tudo é aflição até que seu amigo Mingus começa a impor respeito entre a molecada mal vista do bairro e passa a protegê-lo quando estão juntos. Dos seis anos de idade até a adolescência, eles se tornam inseparáveis e ficam unidos principalmente pelas Histórias em Quadrinhos.

São leitores e colecionadores que fazem do dia a dia dos super-heróis parte de sua rotina e de seu universo. Acompanham as tramas, trocam idéias sobre as melhores sagas de cada super-herói e têm na memória os nomes de seus roteiristas e desenhistas preferidos. Até que um dia, na visita a um hospital, Dylan ganha um anel de um moribundo. O garoto acredita que o presente tem poderes mágicos para voar e – depois – tornar seu portador invisível. Ele faz uma fantasia e cria o Aeroman, um super-herói que circula pelo bairro como combatente do crime. Não demora, claro, revela o segredo para Mingus. Os dois passam a agir juntos em becos e ruas escuras, à procura de criminosos. Delírio e fantasia se confundem nessa história cheia de referências da cultura pop americana da década de 1970, como competições entre DJs e muito grafite, com pichações artísticas que cobrem cada centímetro de parede e decoram um bairro em decadência.

Com a pulsação febril e melancólica do subestimado Jackie Brown, filme de Quentin Tarantino (1998), ambientado na mesma época, A Fortaleza da Solidão tem um roteiro indispensável para quem quer conhecer aspectos curiosos como o melhor da black music que se fazia naquele momento. Nenhuma citação de discos ou músicas na narrativa é inventada, a não ser a carreira do pai de Mingus – que remete ainda à tragédia do astro Marvin Gaye, assassinado pelo próprio pai no apagar daquela que para alguns foi a década das trevas. Portanto, é só anotar os nomes e correr atrás das músicas e dos álbuns – algo quase irresistível por causa do entusiasmo com que os discos são comentados.

Retrato amargo

Romance de formação, a história de Dylan e Mingus é um dos mais amargos e devastadores retratos de uma América que não sonhava mais com as utopias da contracultura da década de 1960. Um país chacoalhado pela humilhante retirada do Vietnã, com brancos racistas acuados e negros dispostos a demarcar seu espaço de qualquer forma. Se a década anterior foi do sonho, aquela pareceu do pesado. O livro explora com densidade uma série de valores, símbolos e ícones de uma geração, com vasta gama de significados e um convite à reflexão. Se não bastasse, Dylan e Mingus têm de sobreviver numa solidão intensa, quase desesperada e cheia de responsabilidades para a pouca idade que têm em pelo menos metade da história. São obrigados a agir assim, sem a proteção de suas mães e vigiados, de longe, por pais distantes e reclusos. Sobrevivem submissos às regras das ruas, onde a integração racial preconizada na década anterior pelos movimentos civis não se completa e os conflitos continuam aflorados.

O teto dos dois garotos começa a ruir pela chegada de um mal que super-herói nenhum consegue vencer, simplesmente porque eles parecem não existir no mundo real dos personagens: as drogas. Como diz a apresentação do livro, trata-se de uma história construída numa época em que qualquer atitude – o que você escuta, a quem se dirige no ônibus, o que faz com o dinheiro do lanche – está carregada de um explosivo sentido social, político ou racial. O título do romance, para quem não fez ainda a relação, é uma referência direta àquela caverna gelada e cheia de cristais nos confins da Terra onde estão guardados os segredos – inclusive as fraquezas – do Super-Homem. Lethem se apropria do termo para fazer uma referência emocional de seus quatro personagens principais – Dylan, Mingus e seus pais –; e física, territorial, de onde se passa a história. Por outro lado, seu enfoque é exclusivamente o universo dos super-heróis da Marvel Comics, provavelmente a grande paixão de sua infância – pelo preciosismo e detalhes das citações e pelas críticas feitas ao conceito da turma da DC Comics. Seu gosto, aliás, recai muito mais para os tipos de segundo ou terceiro escalões, não muito populares e duradouros como os Inumanos e Luke Cage. Há citações sobre os X-Men. Homem-Aranha, Hulk, Capitão América, entretanto, não são muito citados.

Relevância

Os Quadrinhos no romance, aliás, aparecem lá pela página 70 e, só então, ganham uma relevância fundamental na vida dos dois garotos e se tornam indissociáveis no decorrer de boa parte da vida dos dois – que tomará rumos opostos e desiguais na vida adulta. Um dos pontos interessantes relacionados aos comics é a exposição que o autor faz de sua função como um negócio lucrativo para colecionadores que começou a surgir na década de 1970. Numa das passagens, quando Dylan conhece Arthur Lomb, este lhe dá uma dica para fazer dinheiro como colecionador: “Você tem que comprar os números 1. É um investimento. Eu tenho dez números 1 dos ‘Eternos’, dez do ‘2001’, dez do ‘Omega’, dez do ‘Ragman’, dez do ‘Kobra’. E todas essas revistinhas são uma porcaria”. Mais adiante, Lomb diz: “Mas, enfim, o cara que toma conta daquela loja é um otário. Eu afanei um número 1 do ‘Besouro azul’ dele uma vez. Foi tão fácil que chegou a ser patético. O Besouro Azul é da Charlton, você já ouviu falar da Charlton Comics? Fechou as portas. Mas não importa. Número 1 é número 1. Você sabia que o número 1 do ‘Quarteto Fantástico’ está valendo 400 dólares?”.

Há também posicionamentos críticos ditos pelos personagens. “O Besouro Azul deve ser o personagem mais idiota inventado em todos os tempos. Era desenhado pelo (Steve) Ditko, o cara que criou o Homem-Aranha. E o mais estranho é que Ditko nem sabe desenhar. Fica tudo parecendo caricatura. Não importa, é um número 1. Enfia num plástico, põe na prateleira, é o que eu sempre digo. Você usa plástico, não usa?”. O papel que os Quadrinhos têm para Dylan é exemplar ainda quanto ao problema racial, quando ele descreve a operação que tem de montar quase todos os dias para conseguir comprar seus gibis, mesmo se for “cangado” (intimidado a dar dinheiro a seu possível agressor) no difícil caminho entre sua casa e a revistaria do outro lado da calçada. Seu recurso é simples: ele esconde o dinheiro em alguma parte do corpo e deixa uma quantia mais à mão para o agressor. Na saída, esconde as revistinhas por baixo da camisa e sai em disparada.

Não há maiores semelhanças entre as histórias de A Fortaleza da Solidão e de As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay. A não ser que falam de Quadrinhos e de super-heróis. Só. São narrativas de períodos distintos. O primeiro cobre os anos de 1970 a 1990. O segundo enfoca a gênese da indústria dos comics durante a Segunda Guerra Mundial, embora de forma mais romanceada e ficcional, com ênfase exclusiva no tema e na história como produto de mercado. O fato de Michael Chabon ter levado o Prêmio Pulitzer em 2001 na categoria ficção e a receptividade entusiasmada de Lethem teve da crítica americana, vale enfatizar, fazem de seus romances marcos e estabelecem um novo patamar no tratamento dado aos comics como temática para a produção literária – gênero narrativo que faz parte e atende a uma elite cultural supostamente mais sofisticada, exigente e, muitas vezes, preconceituosa e arrogante. São os Quadrinhos tratados com seriedade por esse mercado editorial, o que revela, principalmente no caso de Lethem, a importância que os gibis têm na formação intelectual, cultural e moral das crianças – o que vem ocorrendo há pelo menos setenta anos.

Não deixa de ser curioso e revelador. Assim como no Brasil, em suas memórias, raras personalidades e celebridades americanas destacam o papel das revistinhas em suas primeiras leituras, mesmo que tenham consumido vorazmente e até ter se tornado um colecionador ou colecionadora. A exceção brasileira fica com Millôr Fernandes, que atribui sua paixão pelos Quadrinhos de Alex Raymond o motivo da sua entrada no mercado editorial e de sua opção pelo humor gráfico e pela ilustração. Ao ler Lethem e Chabon, fica a sensação de que um passo adiante – muito importante – foi dado no sentido de tirar os comics do limbo da subcultura, da subliteratura, da diversão barata para entreter crianças em fase de iniciação escolar, adolescentes vagabundos e adultos analfabetos. Sim, essa é a mentalidade que ainda sobrevive nas entrelinhas, nos comentários marotos que surgem em resposta quando se toca no assunto. Não era sem tempo de algo novo acontecer.

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