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Quadrinhos, a maior de todas as subversões
Por Gonçalo Junior
16/03/2007

Ao fazer uma viagem aos Estados Unidos em 1963, o então editor carioca Naumim Aizen, filho de Adolfo, fundador da Editora Brasil-América (Ebal), ouviu de alguns colegas americanos que a indústria dos Quadrinhos estava com os dias contados. As vendas baixas, argumentaram eles, eram a comprovação irrefutável disso. Aizen voltou arrasado e não se sabe até onde isso marcou o início do declínio da editora que trouxe os mais fantásticos heróis e super-heróis dos gibis para o Brasil.

Argumento semelhante fora usado depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando as tiragens despencaram, depois que heróis e super-heróis perderam o atrativo sem ter mais nazistas e japas para enfrentar. Logo a indústria perceberia que a lacuna começava a ser preenchida por outros tipos de Quadrinhos, bem menos nobres para os moralistas de plantão: policiais e de terror. Também vieram os quadrinhos mais inteligentes, que divertiam e faziam refletir sobre a vida e a existência e cujo maior exemplo era a turma criada por Charles Schultz - Charlie Brown, Snoopy e cia. Crise semelhante vivem os Quadrinhos de banca hoje - um tema recorrente nesta coluna e que já deve ter enchido o saco daqueles que gastam seu tempo lendo. Em todas essas diferentes épocas, porém, um assunto relevante é deixado de lado quando se pretende discutir a chamada crise dos gibis: não é a indústria que está morrendo por causa de outras formas de tecnologia. As vendas caíram principalmente porque o mercado vive uma entressafra, está à espera de renovação.

Não quer dizer que só tem sido feito material de má qualidade nos últimos quinze anos. Nada a ver. Uma andorinha só, entretanto, não faz verão. De vez em quando, surgem novos talentos que estimulam os leitores a comprar gibis ou a continuar a lê-los. Mas falta um movimento orquestrado, digamos assim, uma editora que faça realmente a diferença, que promova uma nova revolução na linguagem ou na forma de narrar a partir de um grupo de artistas - e a última que tivemos foi mesmo a das graphic novels e minisséries de luxo. Existem muitos argumentos que sustentam a longevidade "eterna" dos Quadrinhos, assim como acontece com o Teatro, o Cinema e a Televisão. O primeiro e mais importante para mim é, sem dúvida, a sua capacidade única de criar mitos, no sentido mais literal possível do termo. Nenhuma outra forma de arte, de comunicação, de expressão, foi capaz de criar algo próximo quando se observa o transcorrer do século XX. A indústria do cinema estabeleceu mitos, porém de carne e osso - astros como Marilyn Monroe, John Wayne, Bette Davis, Gary Cooper, Audrey Hepburn, etc, só para citar os americanos. A música criou ícones do tipo Madonna, Frank Sinatra, Michael Jackson, etc.

Só os Quadrinhos, porém, criaram seres que transcendem seus criadores, suas formas de expressão - os próprios Comics, o Rádio, o Cinema, a Televisão - e até mesmo as fronteiras de seu país. Intriga-me quando ressuscitam o velho discurso sectário dos anos de 1960 e procuram colocar o Super-homem como a representação máxima do imperialismo ou do capitalismo americano. Seu último filme consegue dimensionar que há muito o Homem de Aço deixou de ser patrimônio americano para se tornar cidadão do mundo. Porque os Quadrinhos são uma forma única de transcender o imaginário popular. Se para alguns é uma típica cultura de massa do século XX, há indícios de que não ficarão restritos a um tempo, a uma era. George W. Bush prestou o inestimável serviço à humanidade de aniquilar toda a mitologia de uma América que era a pátria dos únicos homens verdadeiramente super-homens no planeta, de soldados imbatíveis, invencíveis, mais preparados - apesar da derrota no Vietnã e do fiasco da Guerra do Golfo em 1991. Desmoralizou seu país, fez da idealizada terra da oportunidade, da democracia e da liberdade uma nação de seres prepotentes, preconceituosos, racistas e arrogantes, como se viu no recente filme Babel. Não conseguiu, porém, abalar o mito do Super-Homem que recentemente vimos nas telas. Esse detalhe reforça o poder criativo e a força dos Quadrinhos permanentes de modo geral.

Por outro lado, é uma incoerência que uma arte tão vigorosa e que marcou tanto o imaginário popular nos últimos 100 anos seja ao mesmo tempo subestimada e discriminada. Mais que todas as outras, de longe, foi a mais vigiada, dilapidada e censurada. Faça as contas, levante todos os dados históricos possíveis, some todos os livros, discos e músicas vetadas no Brasil e no mundo ao longo do século XX. Todos esses gêneros foram sim, censurados. Só que em determinados períodos históricos. Literatura, Cinema e Música, por exemplo, sofreram barbaridades nas duas ditaduras brasileiras – Estado Novo (1937-1945) e Regime Militar (1964-1985). Os Quadrinhos não. Têm sido policiados em 110 anos de história. Ininterruptamente. Em todos os lugares do mundo. E não apenas porque uma parcela expressiva de seu público é formada por crianças e adolescentes. Não é o caso aqui de comparar números, mas vale lembrar aqui porque os Quadrinhos são a forma de comunicação e de arte mais visada, perseguida e censurada. A explicação não é tão simples quanto parece, mas pode ser resumida pelo fato dos gibis serem sempre a vanguarda da imaginação, o caldeirão de experimentos da fantasia humana – com a vantagem de representar isso por meio de imagens, em relação ao Livro ou ao Cinema, que só agora consegue dar vida aos gibis, graças à revolução digital. Enfim, são os Comics a mais poderosa das subversões de valores, idéias, comportamentos.

Embora tenham existido artistas que se declararam de direita, como o norte-americano Al Capp, em sua essência, todo roteirista e desenhista de Quadrinhos são subversivos por natureza. Simplesmente porque, na maioria das vezes, têm a clara consciência de um certo poder ilimitado para criar, de que a linguagem dos Quadrinhos não foi ainda totalmente esgotada e oferece mil possibilidades de criação. Por isso, certa vez, na década de 1970, Will Eisner disse que, no quesito evolução, os Comics ainda estavam engatinhando. Não parece que evoluímos muito desde então. O vasto campo da criação, enfim, continua aberto e amplo, como um latifúndio improdutivo. Todo desenhista de gibi quer inovar, criar algo de novo, brincar com a linguagem, etc. Alguns, mais. Outros, menos. Isso depende de uma série de fatores: desde o talento nato à visão de mercado ou formação cultural. Há também muito de anarquismo nos roteiristas de gibis. Eles questionam valores morais, de religião, de política, desafiam a realidade, a vida, a morte, o poder, o sexo. Dão a si mesmo plena liberdade, mesmo que o contexto exija autocensura. Afinal, foram os Quadrinhos os primeiros a pregar a liberdade sexual e a igualdade de direitos das mulheres na década de 1930, só para citar um exemplo.

Nos primeiros tempos da história dos Comics, em forma de humor, as primeiras tiras e páginas dominicais estamparam o mundo miserável dos cortiços nova-iorquinos, enquanto o país tentava vender uma imagem de prosperidade. Por meio de Little Nemo, de Winsor McCay, viajaram para o extremo oposto e prenunciou um novo mundo, que ainda está por vir no século XXI. O escapismo dos Comics nos anos de depressão da América, a partir dos anos de 1930, se eram ingênuos e puritanos por causa da censura, historicamente formaram um rico painel de uma época, só para citar um único aspecto importante. Quando se vive numa época de radicalização e obscurantismo, é preciso que os artistas que hoje fazem Quadrinhos honrem sua tradição histórica e respeitem sua longa tradição de arte subversiva. Porque essa é a essência de uma arte que não pára de propor novos caminhos, novas idéias, novas sociedades e servem como voz para a revolução, às vezes, de uma pessoa só. Porque os Quadrinhos querem e podem mudar o mundo. Basta passar numa banca mais próxima de sua casa.

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