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Entrevista: Claudio Seto
Por Gian Danton (colaborou José Carlos Neves)
24/04/2011

Ele é descendente de uma linhagem de samurais considerados mágicos no antigo Japão feudal. Verdade ou não, de fato Claudio Seto realizou verdadeiras “mágicas” no Quadrinho Brasileiro. Começando por introduzir, ao lado do amigo inseparável Minami Keizi, o mangá, o famoso quadrinho japonês, no Brasil. Hoje falar de mangá no país é a coisa mais banal do mundo, no entanto  em 1966, quando ambos os artistas começaram a publicar as primeiras experiências do gênero no mercado brasileiro, tudo soou muito estranho e diferente! Coube aos dois enfrentarem o estranhamento e preconceito de editores ,colegas e público e desbravarem esse mercado absolutamente virgem. Porém, Seto não apenas foi o co-criador do mangá nacional,como foi muito além:foi uma das cabeças pensantes da mitológica editora Edrel, onde teve carta branca para criar tudo que sua imaginação imprevisível e sua sensibilidade exacerbada permitissem. Como se não bastasse ser um ótimo desenhista, de traço inovador, Seto também possuía um raro feeling para escrever roteiros psicológicos, dramas humanos e existenciais. Para sobreviver no mercado atirou em todas as direções: do humor escrachado ao erotismo, do infantil ao heróico. Também era excelente artista  plástico, escritor e defensor da cultura nipônica no Brasil. Depois de fazer história na Edrel, mudou-se para Curitiba, onde capitaneou a Grafipar, outra editora histórica e fundamental para a HQB.

Mestre Seto faleceu em novembro de 2008, pouco depois de receber um Prêmio HQ Mix e pouco antes de receber um Prêmio Bigorna. Nesta entrevista descontraída e reveladora, realizada em dezembro de 2006, Seto deu uma geral em sua vida, falou do seu polêmico “irmão gêmeo”, e obviamente, de sua longa jornada nos Quadrinhos Brasileiros. A entrevista ficou tão longa que foi dividida em duas partes. Acendam os incensos, acomodem-se nos tatames e prestem todos atenção em cada pequeno grande ensinamento que o imortal Mestre Seto, o samurai mágico, tem pra nos dar. Domo Arigatô, Seto-san!


1 - Bom dia, Mestre Seto. Afinal você nasceu no Japão ou aqui no Brasil?

Nasci no Brasil, na cidade de Guaiçara-SP, e morei entre a infância e a adolescência no Japão, durante  quase oito anos, por isso é comum as pessoas (até meus parentes) pensarem que nasci no Japão. Meu nome verdadeiro é Chuji, mas fui batizado de Cláudio para poder receber o diploma quando me formei no curso primário. Na época, na escola rural de Jundiaí, no bairro do Engordadouro, não entregavam diploma para pagãos(eu era budista, não cristão). Então meus irmãos, eu, e mais meia dúzia de nisseis que estudavam lá, fomos devidamente catequizados como faziam com os índios na época colonial(risos). Cláudio é o nome do meu irmão gêmeo que na época estava morando no Japão. Contam que no tempo do batismo, existia um jogador de futebol do São Paulo F.C. com esse nome. Portanto Cláudio é um nome cristão e inspirado em um nome de jogador que até hoje não sei quem foi. Então eu, legalmente registrado Chuji Seto Takeguma, sou na verdade um falso Cláudio Seto. Já o verdadeiro e registrado Cláudio Seto é o meu irmão gêmeo, que tem o apelido de Chu ou Andy. A única diferença é que apesar de termos nascidos juntos, ele é registrado com nacionalidade japonesa e eu brasileira. Pensávamos que éramos o único caso existente de nome trocado entre irmãos, mas recentemente fiquei sabendo que a atriz Suzana Vieira tem a história semelhante a nossa. Suzana é o nome da irmã dela, que é desconhecida do grande público.

A nossa é uma longa história que se contada em detalhes daria um livro. Mas falando resumidamente, toda essa confusão foi armada pela minha avó materna. Ela era uma pessoa do Período Meiji (1868 a 1912), nascida no século XIX no Japão. O pensamento das pessoas dessa e das épocas anteriores naquele País, a respeito de gêmeos, era o pior possível. Para eles, os seres humanos tinham um filho de cada vez. Ter dois ou mais filhos num mesmo parto, era coisa de bicho, de animal. Podia até acontecer na classe baixíssima dos etá (párias), mas nunca de um samurai ou descendentes,como nós.Tanto que no folclore ou literatura japonesa não existe nenhum caso de gêmeos, pois se acontecesse, matavam um e enterravam para ninguém ficar sabendo.

2 - Puxa vida! Mas  mesmo vivendo no Brasil sua avó não aceitava gêmeos?!?

Quando minha mãe teve gêmeos, minha avó ficou apavorada! Para ela, era a coisa mais vergonhosa do mundo! Um castigo Divino! Então tratou de esconder o fato e só mostrava um dos filhos quando as pessoas vinham visitar minha mãe no pós-parto. Igualmente no cartório de Guaiçara só  registraram a mim. Meu irmão seria registrado mais tarde no Japão, para que ninguém ficasse sabendo que éramos gêmeos. Por isso meu sobrenome é Takeguma (por parte do pai) e o de meu irmão Seto (por parte da mãe). Assim, no segundo ano de vida meu irmão foi levado ao Japão e ficou morando com a irmã da minha avó. Atualmente ele mora na China e no Japão, é desenhista e representante comercial, por isso vive viajando. Esse negócio de gêmeos é coisa de sangue. Atualmente tenho sobrinhas gêmeas e “sobrinhos-netos” gêmeos de uma outra sobrinha.

3 – Hummmm...Sei! E quando vocês se encontraram novamente?!?

Sete anos depois. Quando completei nove anos, fui para o Japão e meu irmão veio para o Brasil. Ficamos juntos quase um mês na casa da irmã da minha avó em Osaka. E durante toda nossa vida trocamos de lugar por várias vezes, inclusive no tempo da Edrel e da Grafipar. Como somos gêmeos idênticos pouca gente percebeu a troca, as únicas pessoas que ficavam desconfiadas foram o Minami Keizi e o Faruk El Katib (dono da Grafipar), ambos editores, que costumavam comentar “o que você fez ? Tá diferente...meio desligado”, pensavam que eu tinha raspado a barba ou cortado o cabelo e ficava por isso. Por causa disso sempre achei que os editores têm percepção mais aguçada que outras pessoas. Como meu irmão também desenha nunca houve problemas. Mas o estilo é um pouco diferente, só perceptível para um estudioso mais atento. Isso de certa forma lembra hoje, o caso dos irmãos Caruso, Paulo e Chico, ambos chargistas com desenhos parecidos.

4 - E vocês chegaram a fazer histórias em parceria?

Algumas. Ele esboçava e eu fazia a arte-final. Como no Japão as histórias tem a leitura ao contrário, e ele estava acostumado assim, eu virava a folha e finalizava nas costas. Muitos artistas que viram nossos originais, não entendiam porque estava desenhado à lápis de um lado e a nanquin do outro. Eu dizia que era porque tinha preguiça de apagar o esboço depois de finalizado a tinta(risos).

5 - E vai dizer que o pessoal dos quadrinhos nunca viu vocês juntos?!?

Sim, o Paulo Frank (Paulo Ohori), Sergius (Sergio Ohori), Waldemarx, Kinue Kawaguti, Kazuko (Zaizen), Elisa Kameyama, Wilson, Carlos Miyaji que trabalharam no meu estudio na fase Edrel conheciam ele. No tempo da Grafipar, quase o Franco de Rosa nos surpreendeu juntos. Certa ele entrou no meu estúdio quando eu estava desenhando com meu irmão. Franco insistiu em saber qual o segredo de desenhar a lápis e um lado e passar a tinta do outro. Eu não soube explicar e quase apresentei meu irmão, que estava sala do lado.

6 - Tá. Deixa eu mudar de assunto(risos). Anualmente há dez anos você escreve o livro “Almanaque Garça da Sorte”, com tiragem de 30 mil exemplares. É um grande sucesso sem dúvida nenhuma, o conhecimento vem da escola do famoso místico da antiguidade Abe no Seimei. Qual sua ligação com a seita secreta Zenchi e qual sua profissão atual?

Sou onmyoji (mestre do Yin e Yang) da seita Zenchi e representante oficial da seita Zenchi Onmyodô, na América do Sul. Meu trabalho consiste em fazer previsões, palestras, orações e magias. Para sobreviver sou artista plástico, pinto quadros de grandes dimensões, escrevo sobre cultura japonesa para o jornal “Nippo-Brasil” de São Paulo. Diariamente trabalho no jornal “O Estado do Paraná” e também no jornal “Tribuna”, edito o “Planeta Zen” e o Bunkyo Shimbun (jornal da colônia japonesa de Curitiba). Faço pesquisa sobre imigração japonesa no Paraná e está em fase de pesquisa o segundo volume do livro Ayumi de 550 páginas. Também sou agitador cultural da colônia japonesa de Curitiba, na coordenação junto com a designer Suemi Hamasaki, promovendo eventos para público de 50 a 130 mil pessoas como o Imin Matsuri de Curitiba (O Festival do Imigrante Japonês) em junho; o Haru Matsuri de Curitiba (A Festa da Primavera) em setembro e o Hana Matsuri (O Natal Budista do Paraná) em abril. Também estamos envolvidos em eventos mensais menores no Bunka Center Praça do Japão.

7 - Sei também que você é um especialista em bonsais.Como anda esse seu trabalho?

Faço estudos florestais de árvores nativas e desenvolvo técnicas para fazer bonsai com árvores brasileiras. Também tenho trabalhado na reprodução de mudas de cerejeira ornamental, sakura, principalmente espécies ainda não adaptadas no Brasil. Meu avo, Noriyasu Seto, foi, se não o primeiro, um dos primeiros bonsaista do Brasil, tenho uma foto dele de 1908, tendo perto um bonsai de limoeiro.

8 - Ok. Vamos falar de quadrinhos. O seu interesse por gibis surgiu na infância mesmo?

A essência dos quadrinhos é a interação texto-imagem. Me marcou muito um haiku (ou haicai se preferir) que meu avô desenhou quando eu tinha seis anos. Meu avô era um budista fervoroso e rezava dia e noite, durante horas. Certa ocasião, quando ele estava rezando no santuário que existia na fábrica de sakê dele, meus irmãos mais velhos (Yoshimitsu e Kuniomi) e eu, resolvemos jogar bola no quarto do nosso avô.

9 - O que?!? Justo no quarto (risos)?!?

Pois é! No primeiro chute a bola de capotão estourou o espelho enorme que existia na porta do guarda-roupas. Nessa época todos os guarda-roupas tinham um espelho enorme na porta. Daí, fugimos, e fomos dormir. Na manhã seguinte, quando o velho Seto foi nos buscar no quarto, pensamos que íamos levar um castigo daqueles. Ele já tinha recolhido os cacos do espelho e na porta do guarda roupas só havia uma madeira branca que ficava atrás do espelho.

O velho Seto nos fez sentar em posição seiza (lótus japonesa) diante do guarda roupa e como castigo tivemos que ficar vendo ele pintar um haigá (haikai com desenho) na madeira onde antes existia espelho. Em tradução rápida o haikai dizia:

“Espelho quebrado
Vaidade em cacos
Surge o monte Fuji.”

O velho Seto desenhou o monte Fuji no fundo, que é uma montanha sagrada do Japão, um rio e um salgueiro. Os galhos do salgueiro pendentes tinham pequenas folhas que iam caindo e dava continuidade transformando em ideogramas que eram os texto do haikai. Essa interação texto-desenho-significado me impressionou muito e durante muitos anos de minha vida, ficou na minha cabeça que arte é interação desses três elementos: texto, desenho, significado. Achei um barato  descobrir que nossa vaidade pode estar ocultando o que há de sagrado em todos nós seres humanos. Creio que aí está a origem de meu interesse pelos quadrinhos durante uma certa época da minha vida!

10 - E foi depois dessa lição que você decidiu que seria um mangajin (desenhista de quadrinhos)?

Não. Creio que essa foi apenas uma semente plantada no meu cérebro, que viria brotar muitos e muitos anos depois. Na época eu nem tinha consciência disso.

11 – Ok. E você pode citar autores e obras que o fizeram gostar de mangas?

No tempo que eu morava em um mosteiro no Japão gostava demais do Osamu Tezuka , inclusive em alguns finais de semana íamos (o monge e os aprendizes) visitar o estúdio dele, e ganhávamos revistas do mestre. Era um sobradinho e no andar de cima do estúdio tinha um dormitório com beliches, onde moravam vários jovens que vinham de toda parte do Japão, para aprender desenho com ele. Porém os dois seguidores da escola de Tezuka que mais me influenciaram foram Hideko Mizuno e Sanpei Shirato. O mestre Sanpei era muito atencioso, me deu vários livros de manga, inclusive quando eu tinha voltado ao Brasil ele me enviou os novos mangas que estava publicando. Em retribuição enviei a ele vários gibis brasileiros, principalmente das editoras Outubro e La Selva. Como eu tinha enviado uma carta avisando sobre o pacote que eu estava enviando,dizendo inclusive que nos gibis tinha trabalhos de nipo-brasileiros como Julio Shimamoto, Shiozo Tokutake, ele criou uma certa expectativa com os gibis, porém quando o mestre os recebeu ficou muito decepcionado. Ele me escreveu dizendo que “esperava ver desenhos diferentes, próprios de brasileiros, mas é igualzinho dos americanos!”. Quando ele montou a Akame Productions, me convidou para ir trabalhar com ele,mas eu não fui porque naquela época era muito caro ficar indo e vindo toda hora do Japão. Meu irmão trabalhou um tempo como aprendiz no estúdio dele. Hideko Mizuno é uma das pioneiras do Shojo Mangá (mangá para meninas). Seu desenhos eram belíssimos e ela, uma mulher charmosa. Eu adorava ela e os desenhos delas! Quando eu tinha 14 anos, fui numa exposição na Associação de Manga de Toquio, e ví a Hideko ao vivo. Fiquei apaixonado!!!Nunca fui apresentado a ela nem nunca conversei com ela. Mas fez parte dos sonhos de minha adolescência(risos).

12 - E você chegou a aprender mangá lá no estúdio do Osamu Tezuka?

Na época que eu freqüentava o estúdio dele eu tinha 11 ou 12 anos, não era um devorador de mangá nem fã afoito do Tezuka. Era um leitor de mangá comum como milhão de japonesinhos. Não tinha idéia de que o Tezuka viria se tornar um deus do Mangá. Nós passávamos no estúdio dele sempre que íamos a Tóquio, porque o monge do mosteiro onde eu era acólito(espécie de “coroinha”), era amigo de infância dele.

13 - E como foi que você virou acólito?

Eu gostava de comprar gibi e tinha uma pilha deles quando era garoto. Meu avô tinha uma fábrica de sakê em Guaiçara-SP. Nessa fábrica havia salões super limpos, higienizados, com ladrilhos branquinhos e lustrados nas paredes. Era onde preparavam o arroz para fermentar e fazer o sakê. Um lugar sagrado onde meu avô chamava de dojo . Essa palavra é usada nas artes marciais como local onde se pratica o caminho das artes da guerra. Na religião como templo onde é praticado o caminho da fé, enfim, era uma área sagrada onde se preparava o koji, a semente da fermentação do sakê. Um dia, peguei latinhas de tinta esmalte sintético e desenhei o Tio Patinhas nas paredes branquinhas do laboratório. Meu avô ficou inconformado por eu ter desenhado justo o símbolo do capitalismo americano(risos)!E resolveu que eu deveria ir ao Japão para ser reeducado e trouxe meu irmão gêmeo para o Brasil. Na verdade o velho Seto já andava invocado porque eu era o garoto que mais possuía gibis em Guaiçara. Ao ir para o Japão, acabei trocando os gibis ocidentais pelos mangás.

14 - Se você tinha tantos gibis na infância,é porque seus pais compravam para você,não? Sua história é diferente de outros desenhistas nisseis como Paulo Fukue e Fernando Ikoma ,cujos pais não gostavam que lessem gibis.

Nos anos 50 eu tinha uma verdadeira gibiteca em Guaiçara! Eram tantos gibis que a molecada da cidade ia todos os dias lá em casa e ficava lendo meus gibis. Minha coleção era uma grande atração pública porque Guaiçara, como qualquer cidade pequena no Brasil, da época, não tinha banca de jornais. Tinha um cara dentro dos trens, que vendia revistas, jornais, pipoca e bebidas para os passageiros. Eu ficava na estação ferroviária esperando o trem e comprava dele. Na verdade tinha poucas opções, então eu comprava tudo que era lançado. Para comprar almanaques de capa dura, como o “Almanaque do Guri” ou “Almanaque do Globo Juvenil”, eu pegava o trem com meu irmão e ia até Bauru na data do lançamento. E olha que na época ,uma viagem de Guaiçara a Bauru levava um dia inteiro!

15 - Tá, mas então seus pais davam dinheiro para você comprar gibis...

Não davam. Na verdade virei um grande colecionador de gibis pelo “cúmulo da cortesia”. Na cultura japonesa existe algo que vista por nós, é um exagero em querer fazer cortesia. Não sei se para eles é uma virtude, mas para nós, torna-se até ridículo. Só para ilustrar, lembro que quando eu era pequeno, meu pai e os amigos dele, todos nipônicos, iam beber e jogar conversa fora no Bar Suzuki, em Guaiçara. Na hora de pagar, todos queriam pagar. Ficava um empurra-empurra cada qual querendo acertar as contas sozinho. O dono do bar ficava desconcentrado por não saber de quem receber. No fim todos jogam dinheiro no balcão e iam embora. Ficava para o dono do bar, a incômoda missão de devolver o dinheiro, porque todos queriam pagar. Não existia a cultura de rachar a conta, isso era visto como descortesia. Dito isso,comigo aconteceu o seguinte caso de “cúmulo da cortesia”. Minha avó ia semanalmente comprar ovos na granja do meu tio Tsuzuki Takeguma. E meu tio nunca cobrava os ovos dela por ser parente. Então havia aí um grande impasse. Minha avó não queria ovos de graça. Queria comprar pra não ficar devendo favores. A cidade era pequena demais para ela ir comprar ovos em outras granjas. Porque certamente perguntariam se brigaram. “Oras, se são parentes por que não compra na Granja Takeguma?”, diriam. Então minha avó se via obrigado a ir comprar ovos lá. E eu ia junto para carregar os engradados de ovos para ela. Então semanalmente ela ia a granja, ficava batendo papo, tomando chá com bolachas e comprava os ovos. Na hora de pagar era um dramalhão. Minha avó deixava o dinheiro na mesa e meu tio ou a tia, queria devolver a todo custo. Ficava aquela coisa de um por dinheiro no bolso do outro. As vezes minha avó deixava o dinheiro debaixo do pires de chá, ou da toalha de mesa e ia embora. Na hora de recolher o chá, meu tio e minha tia descobriam o dinheiro e vinham correndo atrás de nós para devolver. Era o teatro do absurdo no meio da rua(risos)! Um corre-corre tentando devolver o dinheiro e a outra foge para não pegar o dinheiro. Dai ficava aquela guerra de cortesia. Por fim, meu tio cansado enfiava a grana no meu bolso. Eu também não queria receber, mas com as mãos ocupadas com o engradado de ovos, não conseguia evitar que ele pusesse o dinheiro no meu bolso.
Minha avó queria devolver, mas meu tio dizia que havia recebido o pagamento pelos ovos e agora ele estava dando um presente para o sobrinho. Como devolver um presente é anti-cortesia para os japoneses, eu ficava com o dinheiro dos ovos, todas as semanas. Com esse dinheiro eu comprava os gibis. Esse gesto de “cúmulo da cortesia” parece algo arraigado na cultura do povo japonês!

16 - Muito interessante. Mas, e lá no mosteiro do Japão?Você estava estudando para ser monge budista?

Pois é, aí meu pai decidiu que eu deveria estudar lá. Fui levado em 1954, pelo meu avô para fazer um curso de zen budismo durante três meses no templo Myoshinji, em Kyoto. Meu avô voltou com meu irmão gêmeo e iria me buscar depois do curso. Aconteceu que aqui no Brasil, meu avô e meu pai brigaram e meu pai foi morar em Mogi das Cruzes. Daí ninguém ia me buscar no Japão e acabei ficando três anos no templo de Kyoto como acólito. A irmã da minha avó que cuidou do meu irmão estava muito velhinha e o monge achou que era melhor eu ficar morando no templo mesmo.

17 - Que loucura!E qual foi o fato mais marcante que você se lembra lá do estúdio do Tezuka?

Na época o mestre Tezuka tinha mais ou menos 10 aprendizes adolescentes. Entre eles um grandão e gordo que não me lembro o nome. O pessoal de lá viviam gozando da cara dele. Pelo que o monge nos contou depois, o cara não levava muito jeito para desenhar mangá, mas era um caipira muito esforçado e boa gente.

No Japão não é como no Brasil que o pessoal manda seus desenhos para a editora. Um mestre não pode ir até a editora levar originais nem para receber pagamento. Isso seria uma coisa mercenária que depõe contra a arte. Então o funcionário da editora vai ao estúdio do artista buscar os originais e levar o pagamento. Naquela época, tinha um funcionário pentelho que vinha a cada três dias no estúdio, ver se os desenhos que o Tezuka produzia para a editora, estavam prontos. O mestre teria comentado com os aprendizes, o quanto o cara enchia o saco com sua constante presença, e sobre sua irritante voz de taquara rachada.

Um belo dia esse cara bateu na porta do estúdio e o garoto grandão foi atendê-lo. Caladão como sempre não disse nada, mas deu um soco na cara do sujeito e foi batendo até o comprador de originais sair correndo todo ensangüentado. Depois ele fechou a porta e não disse nada a ninguém. Quando chegamos de trem no dia seguinte, o garoto grandão estava na estação de mala e cuia. Conversamos com ele, mas não nos contou o que tinha acontecido. Apenas disse que estava voltando para sua terra natal e pediu para o monge agradecer ao mestre Tezuka pelo tempo que morou no estúdio. O Tezuka só ficou sabendo o que aconteceu quando o comprador da editora apareceu com a cara toda enfaixada (risos). Veio reclamar indenização por danos morais e físicos.

18 - Credo! E quando, afinal, você começou a desenhar profissionalmente?

Foi assim:meu pai morava em Sorocaba na década de 60. Eu tinha voltado do Japão para me alistar no exército e fui morar com ele em Sorocaba, e fui trabalhar como auxiliar de caminhoneiro. Nas horas de folga ainda era pintor de porta de caminhão. Na época todos os caminhões tinham águias ou paisagens bonitas pintadas nas portas e nos paralamas. E frases escritas no para-choques. Meu primo era o caminhoneiro e tinha carteirinha de “comprador de tomate da Cica”. Ele comprava dos lavradores todo final de colheita, isto é, depois que os lavradores colhiam os tomates maiores, vendiam para ele as colheitas de pontas (tomates menores). Então enquanto os peões apanhavam os tomates e carregavam os caminhões, eu ficava nos postos de beira de estrada na rodovia Raposo Tavares pintando as portas dos caminhões.

Aí, um belo dia apareceu um cidadão do tipo descobridor de talentos, e me arrumou emprego na seção de desenho de estampas e fotolito da Fábrica de Tecidos Votorantin. Influenciado por um amigo chamado Wilson de Campos ,que era desenhista da Votorantin, e que sonhava fazer quadrinhos e desenhos animados, enviei uns passatempos já diagramados em páginas inteiras para a Indústria Gráfica Bentivegna que foram logo publicadas. Isso era 1966 e os desenhos foram publicados na revista “Garotas e Piadas” Nº6. Anos depois fiquei sabendo pelo Minami Keizi que o Salvador Bentivegna publicava porque eu mandava já fotolitado. Como na época os filmes de fotolito custavam uma nota, ele publicava por questão de economia.

19 - Esses foram seus primeiros desenhos publicados? Mas já era no estilo mangá?

Foram os primeiros, mas ainda não eram histórias, eram páginas de piadas (hoje chamamos de cartuns ou humor gráfico) e passatempos,em que eu assinava Chu Sorocaba. Nessa época, ainda não existia a editora Edrel,ela só nasceria no ano seguinte. Aí, o Estúdio Maurício de Sousa, que na época já tinha algum nome no mercado, colocou um anúncio na Folha de São Paulo dizendo “Você quer ser desenhista de quadrinhos? Venha fazer um teste no dia tal de tal”. Como entrei de férias na Votorantin, resolvi que iria fazer o tal teste. Saí de Sorocaba de trem, fui para Guaiçara para buscar certificado de reservista e na volta passaria em São Paulo para tentar a sorte no estúdio do Maurício. No entanto,aconteceu que um amigo de infância de Guaiçara, que trabalhava na Lojas Arapuã (que na época estava começando), me disse que estavam precisando de um desenhista lá. Aí eu corri lá e consegui o emprego. A Arapuã tinha um jornal de ofertas,chamado Jornal do Lar, e deram duas páginas semanais para mim. Uma de quadrinhos e outra de passatempos. Foi aí que publiquei meus primeiros mangás. Eram tiras de um personagem chamado “Iê-Iêzinho”, um cabeludo, porque os Beatles estavam na moda e no Brasil ,na época, batizaram o rock deles de “Iê-Iê-Iê” (por causa dos “Yeah,Yeah,Yeah” que eles cantavam direto). Outra tira que eu fazia nesse jornal era do gato Gatonildo. E as minhas primeiras páginas de quadrinhos mesmo foram do meu personagem Beto Sonhador, que na época era um bandeirante.

Esse jornal era enviado para muitas pessoas cadastradas, então pedi para a secretária incluir no cadastro o nome de todas as editoras existentes na época . Não eram muitas: a Abril, Outubro, Bentivegna, Ebal, La Selva e a nova Pan Juvenil, que depois viraria a Edrel. Assim, os jornais com meus desenhos começaram a ser enviados para essas editoras.

20 - Uau! Então por pouco você não virou desenhista da Mônica?!? Já imaginou se você não tivesse aceitado o emprego na Arapuã e fosse fazer o teste do Maurício de Sousa?!? Não teria se tornado um pioneiro do mangá no Brasil e nem uma referência em quadrinhos eróticos!

Sinceramente eu acho que eu não ia passar no teste do Maurício. Me contaram que no tal dia havia fila quilométrica no prédio da Folha de São Paulo, e um diretorzinho de arte do Maurício ironizando todos os candidatos. O Fabiano Dias e o Paulo Fukue, que trabalharam depois na Edrel estiveram na fila e não passaram. Eu não teria nenhuma chance.

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Na semana que vem ,na parte final desta entrevista,vocês vão saber como Seto e Minami se conheceram e se transformaram numa das duplas mais importantes da história da HQ Brasileira. De  quebra, descubra toda a verdade sobre o famoso “irmão gêmeo” de Seto. Não percam!

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