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Um dia no Quartel Swampy - parte 2
Por Mário Latino
06/07/2010

O polivalente Mort Walker

Embora a tira do Beetle Bailey estivesse indo vento em popa, Mort Walker ainda lembrava o quão perto tinha estado do fracasso e pensou na possibilidade de fazer outra tira, caso a do recruta espertinho afundasse. Conversou com Sylvian Back, editor do King Features Syndicate, para ver se não tinha objeções ao fato de ele, Walker, apresentar essa nova tira para outro syndicate. Back, que não era nenhum otário, lhe respondeu que o KFS agenciaria a tira.

Como Walker estava bastante ocupado escrevendo e desenhando Beetle Bailey, a idéia era que ele só escreveria os roteiros da tira, deixando para outro artista a tarefa de desenhá-la. Decidira fazer uma tira de família, mas naquela época esse gênero só trazia casais que passavam o tempo inteiro brigando ou lidando com filhos que eram uma peste. Indo na contramão, Mort queria narrar o dia-a-dia de uma família feliz. Com algumas idéias na mão, ele e Back partiram à procura do desenhista ideal para a tarefa. Foi quando o nome de Dick Browne começou a ser cogitado.

Diferentemente do que se pode pensar, naquela época Dick Browne já era um artista no auge. Desenhava uma tira para a revista Boy’s Life e material de propaganda como anúncios das sopas Campbell e Chá Lipton para a agência Johnstone & Cushing. E, o principal, desenhava em qualquer estilo que pedissem! Conseguiram contatá-lo graças a Stan Drake, que tinha o telefone da agência.

Quando Browne atendeu ao telefone e Back, após se identificar, o convidou para trabalhar para o KFS, a resposta dele foi bater o telefone na sua cara. Só depois de perceber que não era nenhum trote dos colegas da agência foi que Browne ligou para o KFS. Começava assim uma parceria que se não seria a maior entre artistas dos quadrinhos, estava destinada a ser uma das mais divertidas. A primeira tira de Hi and Lois (Zezé, no Brasil) foi publicada no dia 18 de outubro de 1954 e se tornou, rapidamente, uma das mais populares do King Features.

É engraçado saber que nem tudo foram flores nesse relacionamento prolongado entre dois artistas talentosos. Walker era fissurado no trabalho enquanto Browne, boa praça de carteirinha, passava o dia inteiro enrolando, tirando uma soneca ou tomando um cafezinho para, depois, varar a noite desenhando. E as diferenças não paravam por aí, pois Mort Walker vivia fazendo piadinhas do parceiro, nem sempre bem humorado. Apesar disso, durante 30 anos eles compartilharam um estúdio, jogaram golfe, tênis de mesa, fizeram churrascos de fim de semana e beberam todas. Mesmo depois de que Browne estourou com o sucesso de Hagar o Horrível continuaram a fazer Hi and Lois. Isso até passarem o bastão para os filhos, agora também cartunistas.

Além de Beetle Bailey e Hi and Lois, Walker ainda fez outras tiras. Uma delas, Mrs Flitz’s Flats, tratava da vida numa pensão e foi criada para seu assistente Frank Roberge. Publicada entre 1957 e 1972, foi cancelada com a morte do desenhista, que também fazia os roteiros. Chegou a ser publicada em 300 jornais.

Outra tira foi Sam’Strip, feita em parceria com seu assistente Jerry Dumas. A idéia por trás da mesma era satirizar outras personagens de comic strips e o King Features negou-se, no início, a agenciá-la com a justificativa de que não tinham autorização para isso. Walker argumentou que não era necessário ter autorização para fazer uma paródia e foi enfrente. Desde o primeiro dia desfilaram pela tira personagens famosos como Krazy Kat, Little Nemo, Popeye e outros. As tiradas de metalinguagem fizeram da tira a preferida dos cartunistas.

Mas a circulação da mesma era baixa e quando as vendas despencaram foi cancelada. Dez anos mais tarde, o representante de outro syndicate, o NEA, procurou Walter e Dumas com a proposta de reviver a tira. Quando o KFS soube da oferta, negou-se a deixá-los trabalhar para outro syndicate e aceitou que retomassem a mesma, só que agora sob o nome de Sam and Silo. A nova tira está aí há 27 anos. Não é nenhum sucesso de público, mas dá a Jerry Dumas a oportunidade de desenhar vizinhanças adoráveis com árvores estilizadas. E, de passo, tornou o próprio Dumas uma celebridade na sua cidade natal, Greenwich.

Teve ainda outra tira, Boner’s Arch, que Walker assinou com seu primeiro nome, Addison. A mesma foi publicada por trinta anos, até seu cancelamento em 2001.

A gangue de Connecticut

Há muito tempo, praticamente desde que se tornou um artista reconhecido, Mort Walker trabalha com assistentes. Os primeiros foram Fred Rhodes e Frank Roberge, mas Jerry Dumas é, de longe, seu maior colaborador. Eles estão juntos há 52 anos e nunca houve uma reclamação.

Depois vieram os filhos, Brian, Greg e Neal que acabaram entrando no negócio. Brian e Greg escrevem as gags para as tiras do Beetle Bailey. Greg também é arte-finalista das tiras que o próprio Mort ainda faz questão de desenhar. Já Neal toma conta do material que é editado no exterior, principalmente na Suécia e Holanda. Outro que se juntou à patota é Bill Janocha. Há mais de 20 anos ele faz arte-final para boa parte dos projetos que Mort Walker desenvolve.

O método de trabalho é, no mínimo, curioso. Uma vez por mês, Mort se reúne com Jerry Dumas, Greg e Brian. Cada um traz na bagagem 30 gags, o que dá 120 gags no total, para serem avaliadas pelo grupo. A reunião acontece no maior silêncio. Assim, as tiras muito boas são classificadas como tipo 1. São as que estão prontas para serem desenhadas e entintadas. As que estão boas, mas merecem uma revisão ganham classificação 2 e são levadas de volta para serem melhoradas e analisadas numa próxima reunião. Dependendo da falta de qualidade ou do conteúdo impróprio, podem ganhar outra classificação, bem maior. Muitas delas são reaproveitadas nas publicações lançadas no exterior, onde leitores não ligam para as exigências moralistas dos jornais norte-americanos.

Mesmo com as tiras já classificadas, a reunião prossegue. Agora todo mundo opina sobre o texto ou aspectos do desenho. O método funciona, pois até tiras de nível 1 conseguem ser melhoradas. Muitas vezes até aquelas gags que não tinham sido aprovadas numa primeira análise são reaproveitadas.

Esse método era, também, aplicado às tiras de Hi and Lois, mas após a morte de Dick Browne as mesmas ficaram sob a responsabilidade de seus filhos. É um acordo de cavalheiros que tem sido cumprido sem maiores problemas, já que Chance e Chris Browne são amigos de longa data dos filhos de Mort Walker. Só para esclarecimentos, Chris continua fazendo, sozinho, as tiras do Hagar, enquanto Chance desenha Hi and Lois. É para estas tiras que Greg e Brian fazem as gags num esquema similar ao que foi descrito para Beetle Bailey. Por consenso, Mort Walker não participa das tiras de Hi and Lois. O motivo? Pode parecer pueril, mas visto que os dias em que a casa de Mort estava cheia de moleques peraltas já ficaram para trás há muito tempo, é evidente que ele não tem mais a vivência necessária para escrever material para uma tira de família. O mesmo está acontecendo agora que os filhos de Greg, Brian e Chance estão chegando à fase adulta.

Com um universo tão amplo como o do Quartel Swampy, Mort Walker tem estabelecido uma rotina de trabalho para não se complicar. Nas segundas feiras a tira é sobre Beetle Bailey e o sargento. As terças feiras são destinadas às personagens secundárias. Na quarta feira, a protagonista da tira é Miss Buxley (Dona Tetê) e nos sábados é a vez do general Dureza e sua esposa.

Com tantos anos de fazer a tira, nada mais natural que Mort Walker achar que era dono da mesma. De fato, ele criou a situação, assim como as personagens, há 60 anos e depois a apresentou ao KFS. Nessas circunstâncias, se ele morresse, o syndicate poderia procurar outro artista para continuá-la. É o que acontece com a maioria das tiras para jornal, tipo Popeye, Betty Boop ou Gasoline Alley. Mas, em 1980, surpreendentemente, o KFS enviou-lhe para assinar um contrato em que ficava claro que o King Features era o dono de Beetle Bailey e Walker um mero artista contratado para desenhá-lo.

Mort Walker não só não o assinou como comunicou ao syndicate que não assinaria. Percebendo que tinha ido longe demais, a diretoria do KFS recuou e ofereceu-lhe um novo contrato em que ficava claro que Beetle Bailey era propriedade de Walker, mas que ele se comprometia a que o KFS continuasse agenciando a tira durante os próximos quinze anos. E como prova de que tudo estava bem ele ainda recebeu um bônus de um milhão de dólares!

Mais que um cartunista

Mesmo sendo um artista altamente produtivo, Walker sempre encontrou tempo para outros projetos. Na época em que ainda vendia seu trabalho pelo correio, conheceu o cartunista McGowan Miller, membro da National Cartoonists Society. Foi ele quem o convidou para ir a uma reunião da associação que, mesmo com aquele nome pomposo, estava composta de apenas uns quantos cartunistas. As reuniões aconteciam num bar e o pessoal aproveitava para beber enquanto discutiam a pauta e contavam piadas. Depois de umas quantas participações, Walker foi convidado a fazer parte da diretoria. Isso foi na época em que Walter Kelly era o presidente, de 1954 a 1956. Entre homens maduros como Jack Tippit e os célebres Milton Caniff, Walter Kelly e Rube Goldberg, aquele rapaz de 26 anos devia parecer um tanto pretensioso. E, mesmo assim, ele foi convidado a assumir a presidência da NCS, entre 1959 e 1960. O primeiro ato de sua gestão foi procurar um lugar para reuniões mais apropriado!

O outro projeto que Walker abraçou foi o do Cartoon Art Museum e nele levou praticamente trinta anos, com todas as dores de cabeça que foi viabilizá-lo. A idéia de criar um espaço para originais de histórias em quadrinhos, tiras e cartuns surgiu quando Walker percebeu que não existia esse tipo de lugar. É dizer, tinha museus de arte clássica, de artes modernas, de qualquer tipo de arte, menos de cartuns, a arte mais popular de todas!

O primeiro passo foi procurar financiamento ou contribuições para montar o espaço. Bateu nas portas da IBM e do Reader’s Digest, mas saiu de mãos abanando. Finalmente, encontrou uma velha mansão em Greenwich. Os herdeiros não sabiam que fazer com ela e ficaram contentes quando Mort Walker lhes disse que queria alugá-la para um museu.

Reformar aquele prédio foi um trabalho dos diabos, pois quase nada, desde as privadas até as instalações elétricas, funcionava adequadamente. Após conseguir a autorização, Brian e seus amigos, a maioria deles com pretensões artísticas, reformaram o prédio.

A inauguração foi um sucesso. O espaço era agradável, com direito a lanchonete, e ficava a um quarteirão da estação do trem, numa vizinhança calma. A programação intensa, com direito a exibições dos trabalhos de Milton Caniff, Schulz e outros grandes do cartum empolgou a comunidade e as escolas não paravam de visitar o local. Foi então que o dono pediu o espaço de volta.

A seguinte parada foi em Westchester. Era um castelo que tinha sido construído pelo mesmo homem que fizera as fundações para a Estátua da Liberdade. O lugar saiu pela bagatela de 70 mil dólares. Novamente a “equipe” de Brian entrou em ação. O prédio abrigou o museu durante os seguintes quinze anos. Depois a instituição acabou se mudando para Palm Beach na Florida, mas a esta altura o próprio museu tinha se convertido num elefante branco que Walker não tinha mais possibilidade de carregar sozinho. Procurou parceiros ou alternativas que não lhe consumissem mais dinheiro do que já tinha torrado no empreendimento até que, recentemente todo o patrimônio acumulado nele ficou sob o cuidado do Cartoon Library and Museum da Ohio State University, onde está até hoje.

Nem de longe o fim da linha

Aos 87 anos e com uma carreira tão prolífica, poderia se pensar que Mort Walker já fez tudo o que tinha que fazer. Não é assim e esse velho afável, um dos maiores cartunistas de todos os tempos, ainda arruma tempo para projetos pessoais. Um deles é a revista The Best of Times, em que publica tiras de personagens do KFS que não são mais publicadas nos jornais. Ele mesmo arruma patrocínios, diagrama e vai enfrente.

Quando perguntado sobre o futuro das tiras para jornal num período de crise como o atual em que grandes jornais e até grupos de mídia como The Tribune Media Company estão fechando suas portas, ele é categórico. Sempre haverá espaço, mesmo que menor, para as tiras em quadrinhos. Afinal, elas são o que de melhor os jornais trazem. E isso, vindo desse velhinho rechonchudo e bom piadista, ele mesmo uma lenda viva da comic strip, é o que mais de auspicioso poderíamos ouvir.

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