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Teatro: Crítica da peça Huis Clos - Entre Quatro Paredes (SP)
Por Ruy Jobim Neto
28/07/2009

Olha a gota que falta
 

A atriz gaúcha Bruna Thedy (primeiro plano) e Tiago Real, ao fundo, em cena
de Entre Quatro Paredes

 
Uma gota cai. Incessantemente. Nesse meio tempo, uma escaleta é ouvida. O silêncio se impõe ao sopro das poucas teclas do instrumento. A seguir, um acordeon musette faz ressoar uma respiração ofegante. Há um desconforto instalado, de propósito. Enquanto isso, a luz se apaga. Um personagem entra no limiar entre a dúvida e a persistência da retina. É José Garcin, despejado no insólito, no limbo. Assim começa a montagem de Huis Clos – Entre Quatro Paredes, a investida do jovem diretor Rodrigo Fabbro em cima da peça famosa do filósofo francês Jean-Paul Sartre que está em cartaz no Espaço dos Satyros 2 (Praça Roosevelt, Centro de São Paulo-SP).
 
Sim, esta é a peça teatral de Sartre em que é dita a frase “O Inferno são os Outros”, frase-conclusão do próprio personagem Garcin. Mas por que esta conclusão? É nesse texto onde o existencialismo sartriano se coloca no palco com todas as suas idéias, no desenrolar de perguntas e respostas que não batem ou não querem bater. Mas que precisam se encontrar. Sartre (1905-1980) acreditava que os intelectuais têm um papel ativo fundamental a desempenhar na sociedade. Na visão do autor de O Ser e o Nada, no caso humano (e tão somente nesse caso), a existência antecede a essência. O homem primeiro existe, depois se define, enquanto todas as outras coisas são o que são, daí essas outras coisas não terem uma essência após a existência. Os personagens de Huis Clos - o título original de Entre Quatro Paredes, escrita em 1944 – buscam uma coisa, acima de tudo: eles querem se definir, descobrir o que são e o que estão fazendo. Para que servem, afinal de contas. Assim, o espectador vai assistir ao embate de Garcin com outras duas personagens, duas mulheres, Stella, uma burguesa fútil e Inês, uma homossexual. Tendo somente a platéia como testemunha e rodeados por ela, uma coisa esses três personagens confinados numa sala por toda a eternidade irão perceber: que o inferno não é tão mau quanto a Igreja pinta. O inferno é outro. Sartre era ateu. O inferno pode ser uma busca, um caminho, até.

Marta Caetano (ao fundo), Tiago Real e Bruna Thedy, em primeiro plano

 
O autor quer usar sua peça para ponderar sobre a questão da imagem. A falta ou a ausência de espelhos, ou onde está ou quem pode ser o espelho. O outro é fundamental. É para ele que se é? Essa e outras questões são abarcadas na montagem de Rodrigo, que também faz a voz do “rapaz” com quem os personagens conversam. Estamos sim, num belo inferno. Teremos mais perguntas que respostas. Sim, esse é o inferno. No palco, há um quadrilátero branco, asséptico. Nele, há quatro partições, quatro objetos em cena – três canapês quadrados, um de cada cor e um cubo cheio de água (o número quatro se impõe, como no título brasileiro, como as quatro paredes do teatro). Na numerologia, quatro significa ir direto ao assunto, sem rodeios. Um número que não gosta muito de inovar, exigente consigo e com os outros, que prefere o tradicionalismo. Ao mesmo tempo, o número representa ordem, estabilidade, confiança, honestidade – e os três personagens precisam desse sustentáculo a cada instante, senão podem falhar consigo mesmos – o número também peca pela rigidez, pela inflexibilidade, pela insegurança, por ser metódico. Vamos encontrar os dois lados, positivo e negativo, em abundância até, nos personagens da peça.
 
É o que vemos. Garcin (interpretado pelo ator Tiago Real) se vê às voltas com as duas figuras: a bela e insegura Stella (na pele da atriz gaúcha Bruna Thedy) e a distante, observadora e instigante Inês (interpretada por Marta Caetano). Para os personagens, imagens da vida anterior deles se colocam como se fossem fantasmas. O domínio de uns sobre os outros é disposto dialeticamente, ver e ser visto corresponde a dominar e ser dominado. Stella não tem espelhos e precisa ser vista, Inês a deseja, Garcin tem preocupações fora dali, mas não tem como fugir às companheiras de limbo. Os três percebem o confinamento e precisam se controlar ou controlar o outro. O inferno está instalado. Uma viagem sem volta e sem acompanhante. Ou seja, a vida está instalada. A condição dos personagens pesa feito bigorna sobre suas cabeças. Garcin é um jornalista. Sua questão: ser visto como herói ou covarde pelas ações cometidas em vida. Stella se deu bem com um casamento. Teve um bebê indesejado e comete um crime que vai determinar todo o destino daqueles que amava (ou pensou que amava). É uma linda hedonista, ela vai buscar o prazer em troca de uma realidade que a assombra. Inês se afasta de Garcin, o repele com insultos, mas é por Stella que vai se interessar. Ela é uma funcionária dos correios, bem resolvida (ao menos é o que diz) e tem uma agressividade à flor da pele. Ela é sádica, Inês se delicia com o sofrimento dos outros. É a única dos três que está mais próxima da resposta que procuram. Até que ponto?
 

Bruna Thedy

Enfim, ninguém está ali à toa. Essa é a mensagem que Sartre nos joga, para nós, a platéia, que do teatro sairemos para pensar enquanto voltamos para casa ou no caminho para algum restaurante. Não estamos em local algum à toa, em momento algum. Sempre respondemos por nossos atos. Somos obrigados a ser vistos pelo outro. O incômodo instalado pela montagem de Fabbro está tão bem resolvido em cena, com seus intérpretes em alta carga de energia, de entrega, que a platéia fica grudada de ponta a ponta. A relação que se cria entre os personagens é brilhantemente desagradável. Somos nós, os espelhos. Nós somos o inferno. Estamos nus como minhocas. O trio (Marta Caetano, Bruna Thedy e Tiago Real) é eficientíssimo, eles são e estão imantados, tal o jogo que estabelecem, o ritmo, o desenho de cena movido por olhares penetrantes e penetrados. Eles imantam a platéia. A multi-instrumentista Dani Tozzi faz o contraponto musical, a serviço da encenação de Fabbro, e persegue o desconforto, esse desconforto que levaremos dali conosco. Como se sai dessa? Sairemos mesmo? Por isso vale muito a pena sofrer esses momentos e tormentos de Entre Quatro Paredes nessa montagem criativa da Cia. Teatro Arena Quadrada. Um belo Sartre, esse. 
 
Serviço:
Huis Clos (Entre Quatro Paredes)
De Jean-Paul Sartre
Direção: Rodrigo Fabbro
Com: Bruna Thedy, Marta Caetano, Tiago Real e Rodrigo Fabbro (voz)
Espaço dos Satyros 2
Praça Roosevelt, 134 – tel. (11) 3258-6345
Centro, São Paulo
às sexta-feiras, à meia-noite (ou, para os que preferem, 23h59).
R$ 20,00 (inteira), R$ 10,00 (meia)
até dia 31 de julho

(fotos: Lenise Pinheiro)

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